Cláusulas Abusivas e as suas Consequências
Com o presente artigo sobre cláusulas abusivas, trazemos aos nossos leitores o comentário jurídico ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, inerente ao processo 35616/17.7YIPRT.P1, que tem por objeto principal a cláusula contratual geral vs a cláusula penal, numa contratação para fabricação de um determinado calçado, que teria sido solicitado pelas Rés à Autora (doravante RR. e A.).
Ora, em causa está uma Acção Especial Para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias Emergentes de Contrato interposta pela A., uma empresa, contra 2 (duas) clientes, RR. in casu.
Isto porque, segundo as alegações da A., a mesma dedica-se à atividade de fabricação de calçado, vestuário e acessórios, tendo as RR. encomendado diversos sapatos, sendo importante ressalvar que, aquando da encomenda as mesmas aceitaram as condições gerais de venda expressas, impressas no verso das notas de encomenda, que lhe foram lidas, explicadas e por estas aceites, onde constavam as condições para o cancelamento ou modificação da referida nota de encomenda, onde sabiam e conheciam que teriam prazo estabelecido de 8 (oito) dias, para o fazer caso assim o quisessem.
No entanto, no referido prazo estabelecido de 8 (oito) dias, as RR. não se pronunciaram acerca de qualquer cancelamento ou alteração da encomenda, pelo que a A. procedeu ao envio dos bens e emitiu as respetivas faturas nos montantes de, respectivamente, 3.456,30€ (três mil quatrocentos e cinquenta e seis euros e trinta cêntimos) e 3.680,16€ (três mil oitocentos e oitenta euros e dezasseis cêntimos).
Após tal procedimento adotado pela A., as RR. recusaram a encomenda no momento da entrega e não pagaram as facturas que se encontravam em dívida, sendo ainda devidos os juros de mora à taxa legal, desde o vencimento das facturas.
Defenderam ainda as RR. que efectuaram uma encomenda de diversos pares de sapato, referindo que chegaram à conclusão que o valor ficaria incomportável para quem se encontrava em início de actividade, contactando telefonicamente a A., dentro dos ditos 8 (oito) dias seguintes à mesma, dando-lhe conta da sua intenção de cancelar a nota de encomenda, tendo inclusive, sugerido a marcação de uma reunião para que tais motivos lhe fossem devidamente explicados. Face à não marcação da referida reunião reiteraram a sua decisão de anular a encomenda, como o fizeram via email. Mais alegaram que a nota de encomenda, fornecida pela A. utilizava cláusulas gerais não negociadas constantes do verso do impresso que configuram verdadeiro contrato de adesão e cujas condições enunciadas no art.º 4 do requerimento injuntivo se integram no conceito de cláusulas abusivas, cujo conteúdo é manifestamente atentatório era contrário à boa-fé, ao dar a possibilidade da A. caso houvesse recusa ou não sejam entregues os bens, a mesma ficar com aqueles e ainda ser devido o seu preço.
Sucede que A. não concordou com o alegado pelas R. e, defendeu que cláusulas gerais apresentadas aquando do contrato estabelecido entre amba as partes, nem sequer, eram aplicáveis, uma vez que as mesmas são comerciantes e não consumidoras e, por isso, encomendaram sapatos para os venderem em loja ao público, sendo por isso, a Lei das Garantias aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores.
Ora, efetivamente a Lei das Garantias – Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, que regula os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, transpondo as Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770, define, no a sua alínea g) do artigo 2.º, consumidores como “uma pessoa singular que, no que respeita aos contratos abrangidos pelo presente decreto-lei, atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.
No entanto, é importante aqui se perceber que as mesmas procederam à encomenda a título individual, sendo portanto consumidoras e sim, encontram-se abrangidas pela legislação em vigor, pelo que se concorda aqui com as RR. e com a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.
Ora, alegaram ainda que tais cláusulas que constavam do verso do documento nunca foram comunicadas às RR., devendo ser consideradas não escritas, referindo ainda que desconheciam as facturas que a A. alega ter enviado, não tendo também existido tentativas de entrega da mercadoria em causa.
Desta forma, e com todas as provas que foi possível ao Tribunal de 1.ª Instância apurar, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, bem como nulas e excluídas do contrato, as condições gerais constantes do verso das notas de encomenda, por abusivas, não comunicadas e não explicadas e absolveu as RR. do pedido contra elas formulado.
Não conformada, a A. decidiu recorrer da sentença proferida, nomeadamente no que concerne à impugnação da matéria de facto, à (in)aplicabilidade das cláusulas contratuais gerais e ao direito da A. a haver a indemnização peticionada, pontos estes que iremos analisar separadamente.
1. Da (in)aplicabilidade das cláusulas contratuais gerais
O Decreto-Lei 446/85 de 25 de Outubro vem estabelecer o regime a que estão sujeitas as cláusulas contratuais gerais. Esta regulamentação surge perante a constatação de que a negociação dos contratos, assente no princípio da igualdade formal das partes, não corresponde, muitas vezes, à realidade concreta. A massificação do comércio jurídico levou ao surgimento de contratos que não são precedidos de fase negocial, limitando-se a liberdade contratual à aceitação ou não de determinada proposta apresentada. Tal regime pretende salvaguardar os interesses da parte contratualmente mais fraca, surgindo como uma emanação do princípio da boa fé.
A designação de contrato de adesão deriva do facto do consumidor ou cliente não ter intervenção na preparação das cláusulas do contrato que lhe é apresentado, limitando-se a aceitar a proposta que lhe é feita e assim a aderir a um conteúdo unilateralmente fixado pela contraparte. Os chamados contratos de adesão apresentam-se como “contratos padrão” e, sendo o seu conteúdo, em regra, formado por cláusulas contratuais gerais, estão sujeitos ao regime estabelecido no Decreto-Lei 446/85 de 25 de Outubro.
Estamos assim perante um contrato de adesão quando as suas cláusulas resultam da imposição de uma das partes- cláusulas pré fixadas, insusceptíveis de serem negociadas.
De notar, no entanto, que nos termos do n.º 2 do art.º 1º do diploma referido, o regime nele estabelecido aplica-se também às cláusulas inseridas em contratos individualizados, desde que o seu conteúdo seja pré-elaborado e que a parte não pode influenciar.
Assim, e uma vez que esta regulamentação se aplica também às cláusulas contratuais gerais inseridas em contratos individualizados, mais do que saber se estamos ou não perante um contrato de adesão o que releva, é saber se a cláusula em questão constitui uma cláusula contratual geral, ou seja, se o seu conteúdo é pré-elaborado e insusceptível de ser influenciado ou negociado pela parte. Se assim for, tal cláusula, ainda que inseridas em contrato individualizado, encontra-se sujeita ao regime de protecção previsto neste diploma.
Face a esta decisão, já se vê que é inútil apreciar a questão da eventual comunicação desta cláusula às RR. pois no máximo a conclusão a que se poderia chegar é a de as RR. podiam ter cancelado a encomenda apenas nos termos nela previstos.
O âmbito de aplicação de tal diploma não se define por tais critérios, mas antes pela circunstância de estarem em causa cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respetivamente, a subscrever ou aceitar.
Sem necessidade de outras considerações, não se vislumbra que tenha lugar a limitação pretendida pela Recorrente da aplicação do diploma em questão a este caso.
Conclui-se assim pela desproporção da cláusula penal fixada no contrato com os danos a ressarcir e consequentemente pela sua nulidade, sendo por isso também irrelevante o facto de saber se a mesma foi ou não comunicada, já que a sua eventual comunicação nunca poderia obstar à sua invalidade.
2. do direito da A. a haver a indemnização peticionada
A sentença recorrida entendeu que houve uma recusa culposa do cumprimento do contrato por parte das RR., referindo que a A. “terá direito à indemnização pelos prejuízos sofridos em função do mesmo”, concluindo porém que tendo a A. fundamentado o pedido indemnizatório exclusivamente na cláusula penal que foi considerada nula e não tendo alegado factos concretos susceptíveis de revelar os prejuízos que efetivamente sofreu, o pedido formulado na presente acção tem de improceder.
Ali se refere: “A obrigação de indemnização aqui em causa, que se rege pelos arts. 562º e seguintes do Código Civil e que se radica na teoria da diferença entre a situação patrimonial pretérita e presente, face ao evento danoso praticado ou ocorrido, reclamava uma articulação mínima de factos demonstrativos dos prejuízos efectiva e realmente sofridos pela Autora com o incumprimento das Rés bem como a sua posterior prova, nos termos e para os efeitos, respectivamente, dos artigos 264.º, 467.º do Código de Processo Civil e 342.º do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil, o que não aconteceu, pois a mesma radicou a sua pretensão indemnizatória na aludida cláusula penal, entretanto excluída. (…) A principal sanção estabelecida para o não cumprimento consiste, portanto, na obrigação imposta ex lege ao devedor de indemnizar o prejuízo causado ao credor. Este prejuízo compreende tanto o dano emergente como o lucro cessante (artigo 564.º) – todo o interesse contratual positivo, na hipótese de a obrigação provir de contrato – e é determinado em função dos danos concretamente sofridos pelo credor. É que a prestações perfeitamente iguais podem, assim, corresponder indemnizações absolutamente distintas, desde que sejam diferentes os danos causados pelo não cumprimento a um e a outro dos credores.”
Esta argumentação não merece censura e nem sequer é contrariada pela A. no recurso que apresenta. Na verdade, excluindo-se a aplicação da cláusula penal, importa recorrer ao regime geral da obrigação de indemnizar previsto nos art.º 562.º ss. do Código Civil, o que determina o apuramento dos prejuízos efectivamente sofridos pelo credor, sem os ficcionar (como acontece quando se estabelece uma cláusula penal). A A. não tem direito a haver das RR. a prestação inicialmente contratada que se refere ao pagamento do preço dos bens encomendados, como estabelecido na cláusula penal, mas apenas uma indemnização correspondente à reparação dos danos que lhe foram causados pelas RR. com a sua conduta.
3. Direito da A. a haver a indemnização peticionada
No caso, a A. não alegou em que medida é que ficou prejudicada ou viu o seu património afectado, designadamente por não ter conseguido vender os bens em causa a outrem, possibilidade aliás expressamente prevista na cláusula penal excluída, nem a existência de qualquer outro dano concreto susceptível de ser indemnizado.
E nestes termos, considerou o Tribunal da Relação em relação ao Recurso apresentado pela A. que “fundamentando-se o pedido indemnizatório exclusivamente na cláusula penal abusiva, o mesmo tem de improceder, não merecendo censura a decisão que assim o considerou.”, termos em que aqui se concorda.
BQ Advogadas