Cláusulas anti-rivais: verdadeiras limitações à liberdade de circulação de trabalhadores
Muitas são as vezes em que temos tendência de esquecer que os jogadores de futebol são, para todos os efeitos, funcionários, trabalhadores subordinados como o comum dos mortais. As somas avultadas que recebem bem como o protagonismo que rodeia a sua profissão fazem esquecer que, na verdade, ainda que com ordenados acima da média, são pessoas contratadas para desempenhar uma função, sob a ordem, direcção e subordinação a uma entidade patronal.
É certo que o regime da sua prestação de trabalho tem algumas especificidades que se desviam do regime normal da lei laboral, mas isso, várias profissões têm, pelo que ultrapassando a natural desconfiança que nos causa o facto de ser uma profissão com “regalias” acima da média, a verdade é que têm também várias limitações que tocam algumas vertentes que o comum trabalhador também não tem de enfrentar.
Para outros palcos deixaremos as limitações à própria vida privada e liberdade individual – que, por sinal, até já analisámos noutras oportunidades, extensivamente – para nos centrar numa liberdade laboral que, para os jogadores de futebol, é muitas vezes vedada: a liberdade de circulação e escolha de trabalho.
Regime-Regra
Na lei laboral portuguesa o regime regra é a liberdade de trabalho, nos dois sentidos, ou seja, qualquer trabalhador tem o direito de prestar o seu trabalho para a entidade patronal que entender (caso lhe seja apresentada mais do que uma proposta de trabalho, podendo optar pela mais vantajosa para si), mas, também, tem a liberdade de sair ou não continuar num trabalho que não o satisfaz (denúncia do contrato de trabalho).
Esta liberdade não só é algo consagrado apenas na legislação laboral, como é também uma consagração europeia, plasmada na livre circulação de pessoas, da qual decorre a livre circulação de trabalhadores.
No que ao Código do Trabalho especificamente diz respeito, não existem desvios ao regime-regra, ou seja, livre circulação de trabalhadores, podendo estes escolher livremente os seus empregos, bem como sair dos mesmos caso já não sejam aquilo que pretendam.
Porém, na senda da melhor tradição legislativa portuguesa, não há bela sem senão… O que é o mesmo que dizer que, naturalmente, a esta liberdade, poderão existir excepções… O primeiro laivo dessas excepções e que constitui uma primeira limitação aos trabalhadores é o constante do art. 128º nº 1 al. f) do Código do Trabalho: o dever de lealdade.
O dever de lealdade em si, é uma decorrência da relação laboral. A mesma não poderá existir se não for fundada numa confiança daquilo que, na gíria laboral, se costuma traduzir no “estamos todos no mesmo barco” ou indo para águas mais desportivas, “vestir a camisola”.
Este dever de lealdade, especificamente, manda guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios.
Contudo, o grande problema que aqui se coloca é a extensão deste dever de lealdade, ou seja, até onde irá o mesmo? Isto porque, os deveres do trabalhador colocam-se durante a vigência de um contrato, cessando quando o mesmo tem o seu fim, mas, no entanto, a divulgação de informações referentes à organização, métodos de produção e negócios, mesmo depois de cessado o contrato de trabalho, nunca é bem vista no mercado laboral.
É aí que entra a figura do pacto de não concorrência, que tenta, de alguma forma, salvaguardar essa divulgação de know-how de uma entidade empregadora, após a cessação de um contrato de trabalho.
O pacto de não concorrência está previsto no art. 136º do Código do Trabalho, começando este artigo por enunciar, no seu nº 1, a regra: são nulas as cláusulas que possam prejudicar o exercício da liberdade de trabalho após a cessação do contrato.
Contudo, imediatamente no seu nº 2 o artigo em causa acaba por excepcionar tal regra, admitindo uma limitação da actividade do trabalhador durante o período máximo de dois anos após a cessação do contrato de trabalho, desde que tal limitação conste de acordo escrito (seja no próprio contrato, seja em acordo de revogação do mesmo), se estiver em causa exercício de actividade que possa causar prejuízo ao empregador e desde que se compense o trabalhador pela limitação imposta à sua liberdade laboral.
Visto assim, a liberdade de trabalho começa a não parecer a regra, tendo em conta os cenários cada vez mais competitivos de cada indústria ou mercado de actuação, parecendo-nos mais uma figura que cai sempre bem apregoar em qualquer ordenamento, mas que não tem assim tanta aplicação, camuflando-se a falta de liberdade com eufemismos como “limitações”.
Na prática, a “limitação” permitida pode implicar que um trabalhador possa não trabalhar na sua área de expertise por um período de 2 anos, de modo a não prejudicar um empregador que já não o quis ou do qual se fartou e que vai continuar a ter repercussões na sua vida durante um lapso de tempo considerável, em que a entidade empregadora, expectavelmente, progredirá na sua actividade e ao trabalhador só restará ou sair da área geográfica para não violar o pacto de não concorrência ou então terá de ficar afastado da sua área laboral, impedindo a sua progressão e evolução na mesma, por um período de dois anos, que poderão fazer toda a diferença no que toca a conseguir melhores oportunidades de carreira.
E como é que isto se processa em termos desportivos? Ganhamos toda uma nova e mais apelativa nomenclatura para uma situação idêntica e temos as cláusulas anti-rivais.
Para percebermos melhor como funciona a lei laboral desportiva no que a este tema concerne, temos de olhar para a Lei 54/2017, de 14/07, referente ao contrato de trabalho do praticante desportivo.
Fazendo a mesma análise que ao regime geral, do elenco de deveres do praticante desportivo (a.k.a trabalhador) estranhamente não consta o dever de lealdade… No entanto, tal falta é colmatada pelo Código do Trabalho, que se aplica subsidiariamente, pelo que os jogadores têm o dever de guardar lealdade à sua entidade empregadora, o mesmo que dizer, ao clube que o contratou.
Mas também conseguimos encontrar uma figura muito familiar com o que já foi referido acima, no art. 19º desta mesma lei, cujo nome é mesmo liberdade de trabalho. O nº 1 deste artigo refere que são nulas as cláusulas inseridas em contrato de trabalho que condicionem ou limitem a liberdade de trabalho do praticante desportivo após o termo de um vínculo contratual.
Parece-nos uma redacção bastante peremptória e que acaba por abarcar mais situações do que o Código do Trabalho, proibindo aqui aquilo que a lei geral permite a título excepcional, ou seja, os condicionalismos ou limitações.
Então, a conclusão que podemos retirar é que estamos perante um regime mais apertado, que não permite nenhum prejuízo, condicionalismo ou limitação à liberdade de trabalho de um jogador.
Contudo, a lei em causa não deixa totalmente desprovida de protecção a entidade empregadora que perde um jogador que vai levar as competências técnicas que adquiriu enquanto para esta trabalhou, sendo que prevê uma compensação pecuniária a tal entidade empregadora, a ser paga pelo novo empregador, quando celebrar um novo contrato desportivo.
Parece-nos uma solução menos penalizadora do trabalhador, que não se vê, de facto, limitado ou condicionado em prestar o seu trabalho, podendo fazer aquilo que melhor sabe e pelo que recebe uma remuneração.
Uma única ressalva para o facto de que esta solução só se aplica quando falamos de entidades empregadoras portuguesas e sedeadas em território nacional, não sendo aplicável quando o trabalhador vai para um clube estrangeiro.
Mas, após estas constatações, como é que ainda se fala em cláusulas anti-rivais e como ainda se consegue aplicá-las e usá-las?
Porque, como em tudo na vida, a necessidade faz o engenho e o direito e a lei, longe de ser excepção, são um dos campos onde mais se vê o poder da criatividade na tentativa de contornar um sistema desfavorável, sem, contudo, o quebrar.
Ora, atenta a redacção da lei, o que está proibido é limitar o trabalhador, mas nada na mesma fala em qualquer impedimento de limitar o novo empregador… é aqui que entra a criatividade. De facto, as cláusulas anti-rivais continuam a ser utilizadas, ainda que não tenham, em termos formais, tal nome. Contudo, o efeito prático, como todos sabemos, é o mesmo. E as formas de ultrapassar as limitações legais podem revestir diversas modalidades.
Às vezes podemos estar perante manobras, como por exemplo, um clube emprestar um jogador a outro (cedência temporária de trabalhador) com opção de compra e imputar depois o ónus ao clube comprador, caso este exerça esta opção, exigindo compensação a este novo empregador e não ao jogador, em caso de uma futura venda a um rival. Com esta manobra consegue-se não só limitar o jogador (de forma indirecta, não violando assim a sua liberdade de trabalho, pelo menos, de forma aparente), mas também o clube comprador que, apesar de, após a venda, ser o detentor dos direitos sobre aquele jogador, na realidade não pode dele dispor de forma livre, pois não pode vendê-lo a quem quiser, de forma livre e não onerosa, ou seja, pode até vender, mas se for a um rival do clube anterior, terá de pagar uma compensação por essa venda. Assim, em certa medida, é uma solução ainda mais limitadora, pois restringe não um mas dois intervenientes.
Noutras alturas, podemos ter, num acordo com um jogador, uma cláusula de preferência e não uma cláusula impeditiva expressa, ou seja, um jogador que vá para outro campeonato mas que resolva voltar ao território nacional, terá de dar preferência à sua anterior entidade empregadora em Portugal, sobre todas as outras, antes de voltar. Se esta entender accionar a preferência, então só poderá jogar pelo seu antigo clube, que voltará a ser seu empregador, caso não accione a preferência, então aí o jogador poderá assinar por quem entender. Como exemplo prático deste caso, temos a situação do jogador Rúben Semedo, que joga pelo Rio Ave por empréstimo, mas que teve o aval do Sporting Clube de Portugal, que tem um direito de preferência, caso o jogador volte ao campeonato português a título definitivo. Esta modalidade, limita também e claramente, a liberdade de um trabalhador e consegue fazê-lo de forma mais abrangente pois que o limita não só em relação a rivais, mas a nível de todo um campeonato.
Assim, em bom rigor, a proibição das cláusulas anti-rivais não passam de uma imposição legal que fica muito bem no papel, mas que nunca sairá do mesmo, enquanto novas e criativas formas de a contornar sejam admitidas.
Contudo, a verdade é que no futebol, como em qualquer outra indústria altamente competitiva (farmacêutica, telecomunicações, informática, etc.), o segredo é a alma do negócio e tudo o que se puder evitar que chegue a um concorrente, é uma vantagem que se ganha, pelo que a preocupação com a concorrência directa pode representar a diferença entre o sucesso e o fracasso.