Está interessado em comprar um veículo automóvel? Confira a quilometragem primeiramente
O acórdão do Tribunal da Relação do Porto que vamos analisar versa sobre um caso de venda de um veículo automóvel com informações de quilometragem incorretas e condições defeituosas. Em suma, a empresa C.., Lda, comprou um veículo automóvel à empresa B…, Lda.., sendo que a primeira posteriormente descobriu que a quilometragem que se encontrava elencada no veículo era bastante superior à quilometragem informada pelo vendedor. Traduzido em números, a quilometragem fixava em 2016 um total de 72 mil quilómetros e em 2015 um total de 104 mil quilómetros. Por outro lado, embora tivesse sido assegurado pelo vendedor o bom estado do veículo, o mesmo encontrava-se num estado de oxidação tal que levou a oficina da marca a não assumir qualquer risco pela reparação deste.
Análise Jurídica: A Importância da Quilometragem na Compra de Veículos
O tribunal da primeira instância anulou o contrato de compra e venda celebrado e condenou a Ré a restituir à Autora a quantia de 8.825,00 euros acrescido de juros de mora. A “B…,Lda”, insatisfeita com tal decisão, recorreu da mesma, alegando que não tinha conhecimento dos defeitos do veículo e que a compra não teria sido realizada se os defeitos fossem conhecidos.
O Tribunal da Relação confirmou a decisão da primeira instância, enfatizando que o vendedor é presumidamente responsável pelos defeitos da coisa vendida, cabendo-lhe provar o contrário. Foi igualmente considerado que a gravidade dos direitos lesados justificava a anulação do contrato e não apenas uma redução no respetivo preço da compra.
O artigo 913, nº 1 do Código Civil estabelece que “se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes”.
A coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado. O vício corresponde à imperfeição em comparação com a qualidade esperada, enquanto a desconformidade indica uma não correspondência com o especificado em acordo.
As consequências da compra e venda de coisas defeituosas determinam-se com referência a 3 aspetos:
a) cumprimento defeituoso com aplicação das regras gerais da responsabilidade contratual;
b) remissão para a secção anterior a que respeita à compra e venda de bens onerados;
c) especificidades elencadas no artigo 914º do CC;
Em termos gerais, incumbe ao comprador a prova do defeito, artigo 342, n.º 1 do CC e presume-se a culpa do devedor se a coisa entregue padecer de defeito, artigo 799, n.º 1 do CC. Ficando provado o defeito e não tendo sido ilidida a presunção da culpa do devedor, do regime geral do incumprimento das obrigações, decorre o direito de o comprador recusar a entrega da coisa defeituosa.
Face ao caso em análise estamos perante um cumprimento defeituoso de um contrato de compra e venda de veículo automóvel. Visto que, em termos práticos a venda reportou-se a um veículo automóvel em que, em 2016 o mostrador registava 72 mil quilómetros, quando em 2015 apresentava 104 mil quilómetros. A acrescentar, a Ré, aquando da venda garantiu que o veículo se encontrava em boas condições de funcionamento, o que não é reiterado pela oficina oficial da marca.
Deste modo, provados os defeitos, incumbia à ré ilidir a presunção de culpa que sobre si recaía, de acordo com o preceito no artigo 799, nº 1 do CC, o que não fez. Desta forma, o artigo 905.º do CC, por remissão do artigo 913, n. º 1 diz-nos que o contrato de compra e venda de coisa defeituosa é anulável por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais de anulabilidade. No caso em análise, a doutrina considera que em matéria de coisa defeituosa, decorre a exigência da essencialidade e cognoscibilidade do erro por parte do declaratário. Assim, aplicado ao caso, a sociedade B teria de provar o seu erro, bem como a sociedade teria de conhecer e não ignorar esses mesmos requisitos.
Assim é inequívoco que a Ré não podia ignorar o estado do veículo e a sua quilometragem, sobre os quais colocou em erro a compradora. Vejamos que o veículo encontrava-se com uma quilometragem significativamente superior à que constava no respetivo mostrador e que o mesmo não se encontrava em condições de funcionamento. A Autora apenas procedeu à compra do veículo atendendo às informações que lhe foram dadas pelo vendedor.
Atendendo às três possíveis consequências elencadas anteriormente verificamos que não seria possível a resolução do contrato, visto que os vícios que a coisa apresentava não poderiam ser de conhecimento do comprador. Por outro lado, afasta-se a possibilidade de redução do preço, visto que implicaria a necessidade de comprovar que o comprador, mesmo ciente das circunstâncias já apuradas, adquiriria o veículo.
Em suma, concluímos que o regime legal português fornece uma grande proteção ao comprador no contexto de transações de bens defeituosos. Ao estabelecer um quadro claro para a identificação de vícios e desconformidades, o Código Civil não apenas assegura os direitos dos consumidores, mas também impõe obrigações aos vendedores. As regras são claras: o comprador tem à sua disposição o direito de reparação, substituição, redução do preço, ou mesmo a anulação do contrato, dependendo da gravidade do defeito em causa.
Além disso, o facto de o comprador se encontrar incumbido de provar a existência de defeitos no bem, presume-se a responsabilidade do devedor. Desta forma, sublinha-se a importância da transparência e honestidade nas transações, reforçando a confiança no mercado, e na legislação vigente.
BQ Advogadas