Contrato de trabalho vs Contrato de prestação de serviços
No presente acórdão foi levada à apreciação dos tribunais a profissão de instrutor de ginástica para efeitos de aferir se, no caso concreto, existia um contrato de trabalho, ao abrigo da presunção de laboralidade.
Como sabemos, as relações laborais podem revestir diferentes formas e assumir diversos vínculos, uns mais fortes que outros. A presunção de laboralidade serve exactamente para aferir das relações que, aparentemente mais fracas, por falta de um contrato escrito de trabalho, ainda assim, pelo seu desenvolvimento prático, assumem a natureza, de facto, de uma relação laboral estável.
A presunção de laboralidade encontra-se prevista no artigo 12º do Código do Trabalho e consiste, basicamente, num método indiciário para aferir da existência de um contrato de trabalho, verificados certos pressupostos, enunciados na norma.
Uma das situações mais comuns e de conhecimento geral que se insere neste normativo é a dos “falsos recibos verdes”, de que tanta vez ouvimos falar, sendo um método muito utilizado para encapotar uma relação laboral que, em circunstâncias normais, se desenvolveria ao abrigo de um contrato de trabalho.
No caso em concreto, o Autor intentou uma acção a requerer o reconhecimento do seu contrato de trabalho com a Ré, entre 2007 e 2015, alegando que trabalhava de forma exclusiva para esta entidade. A Ré contestou alegando que o Autor nunca solicitou a sua integração como trabalhador e, para além disso, nunca o mesmo foi seu colaborador.
Em primeira instância, foi dado provimento à argumentação da Ré e foi a mesma absolvida do pedido, o que motivou o recurso do Autor para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, revogando alguns pontos da sentença recorrida, alterando as considerações em que os mesmos assentavam, acabou por dar procedência parcial ao pedido do Autor, dando-lhe razão no tocante à existência de um contrato de trabalho, que, consequentemente, lhe conferia um direito a uma indemnização.
Inconformada, a Ré recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça onde, após as alegações e contra-alegações das partes, foi dada vista ao Ministério Público, para que pudesse emitir o seu parecer sobre a questão. Neste parecer, o Procurador do MP manifestou a sua concordância com a decisão de primeira instância, propondo a sua repristinação para substituir a decisão do Tribunal da Relação.
Contrato de trabalho vs Contrato de prestação de serviços e a presunção de laboralidade
A discussão fulcral, como não podia deixar de ser, assentou na existência ou não de um contrato de trabalho, pois daí dependeriam todos os subsequentes pedidos formulados.
Os elementos essenciais para que se decida, sem sombra de dúvida, que existe um contrato de trabalho, ainda que o mesmo não tenha sido reduzido a escrito e não tenha sido assim configurado pelas partes, são os seguintes:
- A actividade em causa tem de ser realizada em local pertencente a quem dela beneficia ou por ele determinado;
- Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;
- O prestador da actividade cumpra as horas de início e fim da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;
- Seja paga uma quantia certa ao prestador da actividade, como contrapartida da mesma, com carácter periódico;
- O prestador da actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa
Assim, verificando-se alguns destes indícios, ainda que as partes não lhe tenham chamado contrato de trabalho, a relação laboral será dessa forma configurada, por ser com a mesma que mais se assemelha.
No caso em concreto, consegue perceber-se que, apesar de tudo, a questão não é assim tão linear, uma vez que o STJ aparece quase como um tribunal de desempate, depois de uma sentença favorável à Ré (1ª instância) e uma segunda em benefício do Autor (2ª instância).
Os argumentos apresentados pela Ré basearam-se nos seguintes factos:
- Nos quase oito anos em que prestou actividade para a empresa, o Autor nunca levantou a questão da sua integração como trabalhador da estrutura e que não manteve com o mesmo qualquer relação laboral;
- De facto, o constante do art. 12º do Código do Trabalho, atinente aos indícios da existência de um contrato de trabalho, configura uma presunção de direito, ou seja, se se verificarem alguns dos indícios, presume-se que existe um vínculo laboral, contudo, tal presunção poderá ser afastada, caso possa ser provada a sua inexistência;
- Tendo em conta que a actividade em causa era de um instrutor de ginástica, que prestava a sua actividade num dos ginásios da Ré, alegou esta que as instalações serem suas não são indícios de um contrato de trabalho, pois fosse neste caso como num de prestação de serviços, verificar-se-ia sempre esta condição de ocorrer nas suas instalações;
- A carga horária foi realmente acordada entre as partes, porém o Autor prestava quando tinha disponibilidade e era livre de aceitar ou não a prestação de actividade no horário proposto;
- O Autor tinha igualmente total liberdade para escolher e decidir a quem dava treinos privados e em que horário o fazia, não existindo qualquer intervenção da Ré nesse aspecto;
- A única intervenção da Ré quanto ao horário estava relacionada inteiramente com a organização do horário do próprio ginásio em si e que tinha de ser assegurado antecipadamente, para melhor informação dos utentes das instalações;
- Relativamente à retribuição que o Autor auferia, a mesma era considerada em função do número de horas prestadas e, ainda que fosse paga mensalmente, o valor variava de mês para mês;
- O Autor não fazia um número fixo de horas por dia, semanas ou mês, não se provando o carácter periódico da sua prestação;
- O Autor prestava serviços para outras entidades que não a Ré, pelo que não assumia a sua prestação qualquer carácter de exclusividade ou dependência em relação a esta;
- O Autor também não logrou provar esta alegada dependência económica em relação à Ré.
Já o Autor apresentou a seguinte argumentação:
- A decisão do tribunal de 2ª instância é a correcta e deve ser mantida na íntegra;
- O nome que as partes dão a um contrato não é factor determinante para a sua qualificação jurídica;
- Tem de se ter em conta o objecto do contrato e a relação entre as partes para fazer a distinção entre prestação de serviços e contrato de trabalho;
- A linha entre as duas é, várias vezes, muito ténue e é compreensível a confusão;
- Ainda que tivesse liberdade dentro da organização, não podia o Autor prestar a sua actividade para ginásios concorrentes da Ré;
- O Autor tinha de usar farda e agendar férias;
- O contrato de trabalho também admite a remuneração em função das horas de trabalho efectivadas;
- O Autor estava sujeito a avaliações estabelecidas e conduzidas pela Ré.
Para fundamentar a sua decisão, o STJ ponderou a matéria de facto dada como provada pelas instâncias inferiores (uma vez que a 2ª instância apenas modificou um artigo da matéria de facto dada como provada, ainda que tal alteração tenha feito toda a diferença).
Em primeira análise, ponderando toda a factualidade, bem como a dificuldade que assume a diferenciação entre contrato de trabalho e prestação de serviços, acabou por determinar que, efectivamente, o Autor prestava a sua actividade inserido na estrutura organizativa da Ré.
Contudo, tal factor, per se, não era suficiente para configurar a relação como laboral e, portanto, havia que determinar se o Autor também se encontrava sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré.
Analisando-se todos os fatos indiciários de tal prerrogativa, acabou o STJ por concluir que não existia contrato de trabalho do Autor com a Ré, pois mesmo que se considerasse que esta última organizava horários, controlava as horas feitas através de mapas e orientasse os períodos de férias, certo é que os horários eram organizados considerando a disponibilidade do Autor, as horas eram controladas apenas para efeitos de pagamento e os períodos de férias eram apenas orientados e não impostos de qualquer forma.
Ademais, também nunca tinha sido pago qualquer valor a título de subsídios de qualquer espécie ao Autor e este podia prestar a sua actividade para outros ginásios, pelo que não estava na exclusiva dependência económica da Ré.
Por todos estes factos, acabou por determinar o STJ que fosse repristinada a decisão de 1ª instância e, desse modo, fosse a Ré absolvida de todos os pedidos formulados pelo Autor na acção.
Assim, ainda que a evidência nos leve a considerar, em primeira linha, que por trás de uma aparente prestação de serviços, existe um contrato de trabalho, é necessário analisar criticamente todos os factos e indícios existentes, pois a fronteira entre estas duas formas de prestação de trabalho é muito ténue e, como vimos, nem sempre consensual nos meios judiciais.