O Aproveitamento dos contratos de trabalho temporário
O acórdão em análise versa sobre o litígio relacionado com o contrato de trabalho estabelecido entre o Autor e a empresa A…; S.A.
Em síntese, o Autor alega que celebrou um contrato individual de trabalho por tempo indeterminado com a Ré, em 1989, contudo e, sem qualquer justificação o Autor passou a celebrar contratos de trabalho temporário com empresas de trabalho temporário desde 1999 a 2014, tudo de acordo com o determinado pelas rés.
Todavia, desde 1989 a dezembro de 2019 o Autor executou exatamente as mesmas tarefas /funções, no mesmo posto e local de trabalho, no mesmo horário de trabalho e com as mesmas ferramentas de trabalho. Razão pela qual o Autor defende que celebrou com a ré um contrato de trabalho sem termo desde 1989, e como tal foi despedido de forma ilícita em dezembro de 2019.
Por outro lado, a Ré alega que o contrato de trabalho celebrado com o autor em 1989 cessou por iniciativa do Autor, por este ter arranjado condições mais favoráveis de trabalho, com efeitos a 31 de maio de 1990.Invoca ainda a exceção perentória de prescrição e de caducidade referente aos créditos laborais peticionados. Defende igualmente que o contrato a termo incerto caducou. Ao que acresce o facto do Autor ter aceite e não ter devolvido a compensação no montante de 4.128,05 euros anteriormente paga pela ré. Sendo certo que o Autor age em abuso de direito.
Assim, o cerne da questão consiste em descobrir qual a natureza do vínculo laboral que se estabelece entre estas.
O Autor ressalva que embora tenha assinado a sua rescisão do contrato em 1999, é trabalhador da 1ªRé desde 1989, e deste modo, continuou a prestar serviços para a mesma identidade até 2014, através de contratos de trabalho temporário sucessivos. Assim, continuou a exercer continuamente tarefas e funções ao longo dos anos para aquela.
Esta situação levanta a questão da natureza desses mesmos contratos e se, na realidade, constituíram uma relação laboral por tempo indeterminado. Visto que, analisando a pretensão do Autor, este pretendia que fosse reconhecida a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, e a posterior ilicitude do despedimento do seu despedimento.
O tribunal ad quo considerou improcedente os pedidos do Autor, absolvendo os réus do pedido.
O autor posto isto, recorreu, alegando diversas nulidades. Argumentou, ainda assim, que as sucessivas contratações que realizou com empresas temporárias consubstanciam fraude à lei. Posto isto, solicitou a conversão dos contratos temporários em contratos de tempo indeterminado e posterior condenação das rés.
Natureza e Legalidade dos Contratos de Trabalho Temporário
Cabe primeiramente, caracterizar o regime de trabalho temporário, tema primordial no acórdão em análise.
De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.05.2014, o regime do trabalho temporário caracteriza-se pelo desdobramento do estatuto da entidade empregadora entre a empresa de trabalho temporário e o utilizador, mantendo o trabalhador um vínculo com a empresa de trabalho temporário, mas ficando a prestação de trabalho sujeita ao poder de direção do utilizador, ou seja, do destinatário da prestação de trabalho.
De acordo com Menezes Cordeiro, o trabalho temporário tem a particularidade de ser um contrato de trabalho triangular em que a posição contratual da entidade empregadora é desdobrada entre a empresa de trabalho temporário e a empresa utilizadora, empresa esta que exerce em relação aos trabalhadores temporários e dentro de certos limites, os poderes de autoridade e de direção, próprios da entidade empregadora, em relação àqueles trabalhadores.
Esta figura contratual constitui um importante instrumento de gestão empresarial para a satisfação de necessidades de mão-de-obra pontuais, imprevistas ou de curta duração. Assim, o contrato de trabalho temporário constitui um contrato especial que se encontra tipificado e regulado na lei, não implicando a existência de qualquer vínculo contratual direto entre a empresa utilizadora e o trabalhador.
Ao invés, assenta em dois contratos interligados, mas autónomos e distintos: o contrato de utilização de trabalho temporário celebrado entre a empresa de trabalho temporário e o utilizador e o contrato de trabalho temporário entre a empresa de trabalho temporário e o trabalhador que verte uma verdadeira relação contratual laboral.
Ambos os referidos contratos, para serem válidos, devem não só ser celebrados de acordo com as situações taxativamente previstas na lei, designadamente nos artigos 175º e 180º nº 1 Código de Trabalho, como obedecer a um determinado formalismo e conter diversas menções, especificadas na lei, artigos 177º e 181º do Código de Trabalho, e ainda conter uma duração que não pode exceder limites máximos igualmente estabelecidos na lei de forma imperativa, artigos 175º, nº3, 178º, nº 2 do memso diploma.
Não obstante esta integração, continuam a caber à empresa de trabalho temporário o dever de pagar a retribuição e demais prestações remuneratórias e o dever de contribuir para o sistema da segurança social e de custear o seguro de acidentes de trabalho sendo ainda desta empresa a titularidade do poder disciplinar sobre o trabalhador.
A situação jus laboral do trabalhador temporário é, assim, uma situação típica de desdobramento dos poderes laborais, na medida em que o poder diretivo cabe ao utilizador, mas o poder disciplinar se mantém na titularidade da empresa de trabalho temporário.
Aplicando ao caso concreto, o que o tribunal ad quem constatou que independentemente do documento datado de 31 de maio de 1999 e do contratualizado posteriormente nos denominados contratos de trabalho temporário e atendendo à restante factualidade provada, o Autor continuou a executar exatamente as mesmas tarefas/funções, no mesmo posto e local de trabalho, no mesmo horário de trabalho, com as mesmas ferramentas de trabalho e sempre tendo em vista as necessidades da mesma entidade, a 1.ª Ré.
Assim, na prática, a situação laboral do Autor, desde o seu início, em nada se alterou e só a esta última, à 1ª Ré, o Autor esteve na realidade vinculado.
Ora, no período de 1999 a maio de 2014, ocorreu de acordo com o tribunal ad quem fraude à lei, impondo-se a desconsideração das Empresas de Trabalho Temporário bem como que não se considere que os contratos de trabalho temporários se tenham como convertidos em contrato sem termo com as Rés, antes sim a consequente contagem da antiguidade em relação a esse período, no vínculo entre o Autor e a 1ª Ré.
Desta forma, as empresas temporárias, nas palavras de Pedro Caeiro, mascararam uma situação, servindo de véu para encobrir uma realidade.
Assim, de acordo com Menezes Cordeiro, quando ocorrer o uso indevido ou abusivo da personalidade coletiva, com o intuito de prejudicar terceiros e contrariar normas ou princípios gerais, inclusive a ética empresarial, é admissível a adoção de medidas para desconsiderar ou superar essa personalidade jurídica coletiva.
Este instituto embora não esteja expressamente regulado na nossa legislação, não obstante, encontra suporte nas disposições fundamentais do nosso direito civil, nomeadamente no artigo 334º do Código Civil. Dispõe este artigo que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Em concreto, a realidade encoberta era mesmo a do Autor estar a prestar o seu trabalho para a 1ª Ré, ainda que formalmente o vínculo contratual tivesse sido, durante um período de 1999 a maio de 2014 com as Empresas de Trabalho Temporário. A desconsideração sempre implica um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, ou seja, requer a formulação de uma censura, devendo ser ilícita, sendo necessário avaliar se houve uma conduta fraudulenta ou abusiva em relação à lei.
Na verdade, considerando a factualidade evidenciada, a existência e funcionamento das Empresas Trabalho Temporário relativamente ao vínculo laboral do Autor, demonstra abuso de personalidade coletiva, não sendo mais que um embuste para permitir, de forma aparentemente legal, evitar o cumprimento de obrigações da responsabilidade da 1ªRé, por responsabilidades relativas ao vínculo existente com o autor.
Assim, de acordo com o disposto no artigo 389º, nº 1 do Código do Trabalho, sendo o despedimento declarado ilícito, o empregador é condenado: a) a indemnizar o trabalhador por todos os danos, patrimoniais e não patrimoniais, causados; b) a reintegrá-lo no mesmo estabelecimento da empresa, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, salvo nos casos previstos nos artigos 391º e 392º (indemnização em substituição da reintegração a pedido do trabalhador ou do empregador, respetivamente).
Uma vez que o trabalhador optou pela indemnização (prescindindo da respetiva reintegração) será a mesma fixada nos termos previstos pelo artigo 391º do Código do Trabalho.
Dado que, no contexto em análise, o colaborador prestou serviços à entidade empregadora por um período substancialmente longo, 1 de fevereiro de 1989 a 06 dezembro de 2019, foram evidenciados fatos que indicam um grau de ilicitude do despedimento consideravelmente elevado. Essa mesma ilicitude está associada ao contexto de precariedade que, conforme apurado, foi imposta pela Ré desde o início. Portanto considero ser mais que apropriado e justo estabelecer a compensação de 40 dias de retribuição base.
Deste modo, a 1ª Ré foi condenada a reconhecer a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, celebrado entre o Autor e a 1ªRé, desde 1989 a 2019 e a pagar ao Autor uma indemnização correspondente a 40 dias de retribuição base, por cada ano completo ou fração de antiguidade, contando-se para o efeito todo o tempo decorrido até à data do trânsito em julgado da decisão judicial.
BQ Advogadas