Croissants e campanhas de selos: motivo para despedimento?
Hoje vamos abordar o recente acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de maio de 2023, proc. nº 603/22.2T8BGC.G1, que tantas manchetes de jornais fez com títulos como “Hipermercado despede funcionária por comer croissant” ou “Funcionária come croissant e é despedida”.
Mas será que é mesmo assim? Sabemos que o jornalismo é algo muitas vezes sensacionalista, que não conta toda a história por trás da notícia. Neste espaço vamos analisar a questão do ponto de vista jurídico-legal, e mostrar que, afinal, o que pode pode ter lido nas notícias não corresponde inteiramente à realidade.
Ora bem, posto isto, vamos então aos factos.
No dia 12 de janeiro de 2022 a trabalhadora recebeu uma nota de culpa da parte da entidade empregadora- uma cadeia de hipermercados- a informar que pretendia proceder ao seu despedimento, com base em atos praticados nos meses de outubro e novembro do ano de 2021, dando o respetivo prazo legal para a trabalhadora se defender.
Estes atos em questão podem-se resumir no aproveitamento, por parte da subordinada, do uso de selos de uma campanha publicitária da empresa. Explicitando, a cadeia de hipermercados tinha uma campanha em que por cada 20€ gastos em compras, os clientes adquiriam um selo que deveria ser fixado numa caderneta fornecida pela mesma empresa. Estas cadernetas, depois de conterem uma pluralidade de selos, davam direito a descontos ou mesmo ofertas de facas de cozinha.
Ao que se apurou, todos os operadores do supermercado estavam proibidos de utilizar em proveito próprio os selos que lhes eram entregues para fornecer aos clientes que dependessem o montante necessário para os receberem. A cadeia de hipermercados detetou que a trabalhadora utilizou selos em proveito próprio, que lhe tinham sido dados por operadores de caixa.
A entidade patronal não conseguiu provar dois factos importantes:
- Que a trabalhadora tinha sido advertida que não podia fazer o uso de selos (porque a mesma trabalhava na secção hortícola e não na caixa, não tendo logrado receber a mesma explicação sobre a campanha que os seus colegas que operam nas caixas);
- Que a trabalhadora conspirou com os seus colegas operadores de caixa todo um estratagema para tirar proveito próprio da campanha de selos.
Acresce ainda o que vamos chamar, divertidamente, de operação croissant.
Basicamente, a entidade empregadora fez um aditamento à nota de culpa no dia 2 de fevereiro de 2022, acrescentando a, por nós intitulada, operação croissant que nada mais foi do que o consumo, por parte da trabalhadora, de um croissant que já se encontrava no carrinho que quebras (isto é, já não seria comerciável pela empresa, apenas podendo ser consumido pelos trabalhadores, doado ou deitado ao lixo), sem ter requerido autorização do seu superior hierárquico. Este facto ocorreu no dia 20 de dezembro de 2021.
Vamos agora ver o que diz o Direito sobre a situação.
Primeiramente, cabe salientar que o empregador cumpriu com o procedimento legal necessário para proceder a um despedimento, decorrente dos artigos 352-357º do Código do Trabalho.
Vamos agora à parte mais interessante e que tanto é importante no mundo do trabalho: o conceito de justa causa para despedimento.
Se é um leitor recorrente dos artigos publicados pela BQ Advogadas já saberá que o conceito de justa causa se encontra no art.º351 do Código do Trabalho, doravante CT:
Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
Esta definição contém 3 elementos:
- Um elemento subjetivo – o comportamento culposo do trabalhador, que tem que ser ilícito e grave
- Um elemento objetivo – a perda de confiança do empregador para com o trabalhador, que torne praticamente impossível a continuação da execução do contrato continuado que é o contrato de trabalho
- Um nexo de causalidade– uma ligação direta entre a atitude ilícita do trabalhador e a perda de confiança pelo empregador.
E que se faça o aviso que quando o conceito menciona a gravidade e a impossibilidade prática, não é para se tomar por leve estes requisitos. Os Tribunais que julgam estes casos costumam ser extremamente rígidos na aplicação destes critérios.
O nosso país tem requisitos para proceder ao despedimento muito rígidos, se compararmos com outros ordenamentos jurídicos do mundo ocidental. Esta é uma questão de política legislativa, em que o legislador eleito democraticamente, a Assembleia da República, fez a lei nesse sentido. Todos nós podemos julgar, concordando ou discordando da opção, mas se não concordamos, a única solução que temos é votar diferente em eleições futuras. Já aos Tribunais, cabe-lhes aplicar a lei corretamente e isso faz-se indo de acordo ao espírito legislativo, que neste caso foi inequívoco no sentido de impor que a justa causa para despedimento tenha obrigatoriamente que ser algo grave, de última ratio.
Neste caso foi unânime a opinião de que o uso dos selos e a operação croissant não consubstancia um motivo de justa causa para despedimento, pois tanto as decisões de 1ª e 2ª instância, quer o parecer emitido pela Procuradora-Geral Adjunta, consideraram que os comportamentos não eram graves o suficiente para quebrar a relação de confiança do empregador com a trabalhadora.
Vamos então debruçar-nos sobre a decisão.
Um primeiro ponto a realçar é o de que os comportamentos realmente foram atitudes que violaram as regras estabelecidas pelo empregador no seu poder de direção, ao abrigo do art.º97 do CT.
Não havendo equívocos quanto a isso, dúvidas haverão se formos qualificar os comportamentos do trabalhador como graves, ao ponto de quebrarem a confiança do empregador.
O sistema legal está construído de maneira a que a ilicitude cometida pelo trabalhador tenha que ser ser de tal maneira séria, que obste a que futuramente o empregador tenha qualquer tipo de confiança naquele. Alguns exemplos encontram-se no número 2 do art.º351, mas que não se deixe dúvidas. Estas exemplificações são isso mesmo, exemplos. Meramente ilustrativo, este preceito não vem trazer qualquer elucidação do conceito de justa causa. O que realmente importa é enquadrar a(s) atitude(s) do subordinado no conceito do art.º351/1.
E, para tal, tem que haver um ilícito muito sério, que não deixe margem razoável para o empregador poder voltar a depositar confiança naquele trabalhador para exercer qualquer tipo de tarefa dentro daquele meio empresarial.
Esta confiança de que falamos tem cabimento por dois motivos.
Primeiro, porque um contrato de trabalho caracteriza-se por ser um contrato de execução continuada. Num negócio jurídico deste tipo, as partes têm que ter convicção e segurança de que a contraprestação (a prestação da outra parte) é bem executada e satisfatória, sendo a confiança de uma parte na outra essencial para uma boa operatividade. Pense-se, por exemplo, se o empregador nunca paga a horas. O trabalhador poderá ter confiança neste tipo de entidade empregadora? É difícil, daí que isso seja um motivo para o próprio trabalhador fazer cessar o contrato, ao abrigo do art.º 394/2 a).
Segundo, se pensarmos que uma empresa, na definição tradicional da doutrina, é uma organização de meios. Por outras palavras, é uma estrutura organizada, onde todos os envolvidos têm que estar coesos, remando para o mesmo lado. Só assim uma empresa pode operar de modo satisfatório e para isto é imperativo que haja relações de confiança entre todos os envolvidos. Como pode um empregador delegar tarefas numa pessoa em que não confia? Você, leitor, contrataria um completo estranho para lhe limpar a casa, dando-lhe uma chave e acesso total aos seus pertences? Não, pois não? Numa empresa é igual. O patrão tem que ter garantias de que pode contar com os seus empregados para completar as tarefas que lhes encarrega.
Agora falando do caso concreto, verdade é que a trabalhadora usou selos que não devia ao longo de dois meses, causando um prejuízo de umas dezenas de euros à empresa, e também é verdade que não pediu autorização para comer o croissant.
Também é certo que, como atenuantes, temos as realidades de que não terá a trabalhadora sido avisada da impossibilidade de usar selos, pelo que não sabia estar a cometer uma infração, o croissant já não ser comerciável (pelo que não causou prejuízo económico ao empregador) a de que a ingestão de croissants pelos funcionários sem antes requerer ao superior hierárquico era algo frequente entre todos os funcionários do supermercado.
O tribunal ainda considerou o facto de a empresa não ter posto logo a operação croissant na nota de culpa, só o fazendo um mês depois, mesmo sabendo do facto aquando da entrega da nota de culpa à trabalhadora. No entender dos juízes, este foi um indício de que a própria empregadora não considerava o facto como motivo de despedimento.
Agora vejamos, estes comportamentos são de tal maneira sérios e graves que justificam que o empregador alegue a perda de confiança definitiva no trabalhador? Entenderam os Tribunais e a Procuradora-Geral que não, e tal entendimento não merece censura.
Há que ter em conta que o despedimento é a medida sancionatória mais grave que se pode aplicar. O artigo 328/1 do CT dispõe gradualmente seis sanções aplicáveis ao trabalhador por comportamentos incorretos: repressão, repreensão registada, sanção pecuniária, perda de dias de férias, suspensão com perda de retribuição e antiguidade e , por fim, o despedimento com justa causa.
O Tribunal concluiu a sentença a afirmar que, mesmo que considerássemos que a trabalhadora deveria ter sido sancionada, vários são os modos de o fazer e certamente o mais grave não era necessário.
Também nos parece que uma repreensão escrita ou sanção pecuniária poderiam ter acautelado o sucedido, caso se entendesse que era necessário sancionar a trabalhadora. O despedimento é, portanto, excessivo e desproporcional, sendo ilícito, ao abrigo do art.º381 b) do CT.
Podemos concluir que apesar de o despedimento ser excessivo e o Tribunal assim o ter entendido, não houve qualquer despedimento por uma funcionária ter “comido um croissant” como afirmaram os meios de comunicação social.
De qualquer modo, está cá a BQ Advogadas, sempre ao seu dispor, para repor a verdade e para explicar um pouco deste mundo fascinante da Lei, do Direito e dos Tribunais.