A culpa in vigilando nos lares de idosos: Uma análise à luz do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14/04/2020
I – Introdução
Neste artigo vamos analisar uma decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora a 14/04/2020 no âmbito do Processo n.º 1107/16.8T9PTG.E1, cujo thema decidendum se centra na culpa in vigilando nos lares de idosos e responsabilidade civil daí decorrente.
Cumpre em primeiro lugar esclarecer de que se trata este conceito que vem plasmado no artigo 491º do Código Civil, sob a epígrafe “Responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem”.
Assim, estabelece esta norma que “as pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido”, ou seja, contemplam-se aqui as situações de responsabilidade por omissão do dever de vigilância, em que não foram tomadas todas as devidas e necessárias precauções para evitar que se produzisse um dano, existindo assim uma presunção de culpa.
Esta presunção de culpa é ilidível, o que significa que a pessoa incumbida da vigilância pode vir mostrar que cumpriu tal dever ou que os danos se teriam produzido ainda que tal dever tivesse sido cumprido, afastando assim tal presunção e bem assim a responsabilidade civil. Neste caso pode inverter-se o ónus da prova e caber ao lesado a prova dos factos que alega.
Posto isto, centremo-nos agora na situação em causa no processo.
II – O caso concreto
Foi deduzida acusação contra duas funcionárias de uma Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) em Portalegre por homicídio por negligência de uma utente, nos autos Ofendida, que padecia da doença de Alzheimer que faleceu por asfixia naquela unidade.
Em consequência da doença da qual padecia, a utente ficava muito agitada durante a noite, levantava-se da cama, por vezes gritava toda a noite e apresentava um quadro de saúde debilitado, tendo sofrido quedas por várias vezes naquela estrutura residêncial.
De notar que a sua cama não tinha grades nem proteção lateral dado que estas camas eram reservadas apenas para doentes acamados ou totalmente dependentes.
Face às várias quedas da utente e no intuito de prevenir que tal situação voltasse a acontecer, foi decidido pela equipa de enfermagem do Lar que, até ordem em contrário, a mesma deveria ser imobilizada na cama, tendo sido colocado um lençol atado à cama, e atravessado como se fosse uma faixa, sobre o seu tórax, na região infra mamária, deixando os braços e as pernas livres.
Contudo, esta imobilização foi feita na sua cama que não possuía grades ou qualquer outra protecção lateral, o que apenas prevenia que a ofendida se levantasse de noite e caísse, mas que não prevenia (nem preveniu) uma queda da cama.
Assim, resultou que em hora não concretamente apurada, situada entre as 21h00m e as 21h30m, do dia 04-11-2016, a utente, apesar de se encontrar imobilizada com a referida faixa de lençol em volta do tórax, conseguiu movimentar-se na cama, tentando libertar-se do lençol que a prendia à cama até conseguir colocar os braços por baixo da faixa, a qual acabou por se deslocar da zona do tórax para a zona do pescoço.
A Ofendida foi escorregando lateralmente da cama e por não se conseguir mudar de posição, acabou por ficar presa, com a faixa em roda do pescoço, que a foi lentamente comprimindo, produzindo-lhe asfixia mecânica por constrição do pescoço (sufocação), tendo sido encontrada já sem vida por volta das 22h por uma das funcionárias arguidas no processo.
As Arguidas são trabalhadoras com a categoria de Ajudantes de Lar, exercendo a sua actividade na ERPI – Estrutura Residencial para Pessoas Idosas de Portalegre, e estavam ao serviço no dia da ocorrência dos factos, apesar de em turnos diferentes.
Enquanto ajudantes de lar, competia às Arguidas a vigilância dos utentes, garantindo a sua segurança e a prestação de cuidados básicos como a administração de medicação, refeições e higiene diária.
Para a vigilância dos utentes devem ser realizadas rondas junto dos quartos dos mesmos, a ocorrer obrigatoriamente no fim dos turnos do período nocturno, que terminavam às 21h00m, competido em especial vigilância permanente sobre as utentes instaladas no 1.º piso, por se encontrarem dependentes das ajudantes, como era o caso da ofendida.
A Arguida que estava de turno até às 21h efectuou uma ronda de vigilância junto da ofendida, antes de ser substituída pela outra Arguida que entrava às 21h, cerca das 21h00m dessa noite, e verificou que se encontrava bem.
Ao assumir o turno que se iniciou às 21h00m daquela noite, a outra Arguida foi de imediato para a copa do 1º piso para preparar as ceias. Em seguida procedeu à sua distribuição pelos utentes, tendo chegado ao quarto da ofendida por volta das 22h00, dado que este era o último quarto do 1.º piso a ser servido e verificado e quando aí chegou deparou-se com a utente já sem vida.
Os Demandantes, filhos e únicos herdeiros da ofendida, alegaram assim a violação de deveres de cuidado e a omissão de cuidados básicos que as arguidas tinham de prestar à sua mãe, e que a sua morte ocorreu pelo descuido, desinteresse e incúria das mesmas, tendo deduzido pedido de indemnização civil contra a Demandada (SCM, proprietária da ERPI) alegando que as demandadas arguidas não asseguraram a vigilância devida e omitiram os deveres de cuidado a que estavam obrigadas.
Por sua vez, a Demandada alegou que não existiu qualquer incumprimento ou omissão por parte das arguidas e que a morte da ofendida não foi causada por qualquer acção ou omissão da Demandada, não se verificando qualquer nexo de causalidade, não existindo assim fundamento para a responsabilidade civil.
Em primeira instância foi proferida sentença absolutória das duas Arguidas que vinham acusadas de um crime de homicídio por negligência e do pedido cível contra as mesmas deduzido.
Contudo, nesta sentença foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelos filhos da Ofendida contra a Demandada Civil SCM, tendo esta sido condenada a pagar aos Demandantes, “em partes iguais, o valor global de 95.000,00€ a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados pelo seu incumprimento contratual, acrescida de juros à taxa legal de 4%, contados a partir da data da presente decisão até efectivo e integral pagamento.
Inconformada, a Demandada recorreu desta decisão.
Na matéria de facto, o erro notório na apreciação dos factos e a contradição insanável entre os factos provados.
Ora, no que toca a tais argumentos, o Tribunal da Relação de Évora entendeu que não assistia razão à Demandada por não encontrar erro na apreciação dos factos nem contradições insanáveis, mantendo nesta parte integralmente a decisão do tribunal de primeira instância.
No que toca à impugnação da matéria de direito, impugnou a Demandada a obrigação de indemnizar e o montante indemnizatório.
Para tanto alegou, em suma, que não se verificou um facto ilícito nem a culpa, que são pressupostos da responsabilidade civil, pelo que deveria ser julgado improcedente o pedido de indemnização civil em que foi condenada.
Os Demandantes por sua vez contrapuseram tais argumentos, invocando para tal vários factos, em suma alegando que a ofendida foi imobilizada numa cama sem grades, o que não a protegeu nem fez com que ficasse em segurança, algo que levou à sua asfixia, bem como o facto de não ter existido uma vigilância permanente, o que não ocorreu em função do meio de organização do trabalho da Demandada.
Mais alegaram que a Demandada (SCM) ao permitir que a Ofendida estivesse sem uma vigilância adequada ao seu estado de saúde, incorrectamente imobilizada e ao permitir que esta escorregasse da cama, acabando por ser asfixiada com um lençol, até à morte, omitiu os deveres de cuidado a que está obrigada.
Apreciando a questão, o tribunal de recurso entendeu prima facie que, o tribunal a quo situou a responsabilidade civil da Demandada no âmbito do incumprimento de contrato, contudo a resposta jurídica para o este caso concreto deve encontrar-se no contexto das normas que regem a culpa in vigilando.
Neste caso estamos perante uma situação de uma obrigação decorrente do dever de vigilância por internamento de idosa com incapacidade natural em lar, sendo que desta constatação jurídica resulta que o dever de vigilância incluiu os cuidados e a assistência necessários a que a ofendida dormisse em segurança e a que episódios como o do caso em concreto não ocorressem.
Ora, conforme inicialmente referido, o artigo 491º do C.C. refere-se a uma situação específica de responsabilidade subjectiva pela omissão, assentando na ideia de que não foram tomadas as necessárias precauções para evitar o dano, por omissão do dever de vigilância, tendo igualmente entendido que nesta situação é de afastar a presunção que inverte o ónus da prova prevista no referido artigo que só existe para o caso de danos a terceiros e não abrange os danos próprios daquele que necessita de vigilância, ou seja, nesta caso é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor na lesão.
No caso, era aos Demandantes que competia a tarefa de provar que o lar não cumpriu com tais obrigações que ditavam as circunstâncias para prevenir o dano.
Apreciando o conceito de dever de vigilância que incumbe aos Lares de Idosos, estes estão obrigados a proporcionar serviços permanentes e adequados à problemática biopsicossocial das pessoas idosas e garantir a prestação de todos os cuidados adequados à satisfação das necessidades dos idosos, designadamente, alimentação, cuidados de higiene e conforto, de ocupação, médicos e de enfermagem, tendo em vista a manutenção da sua autonomia (cfr. Norma II, nº 1, al. a) e nº 2, alíneas a) e c) do Despacho Normativo nº 67/89, de 26 de Julho).
Daqui resulta que, os lares devem desenvolver formas adequadas à protecção e segurança dos seus utentes, entre as quais a obrigação de controlarem o seu comportamento, o que se impõe particularmente em relação àqueles que tenham evidenciado “comportamentos desajustados” da realidade.
Para aferir se o dever de vigilância foi ou não cumprido, o padrão de conduta exigível é o de uma pessoa média, colocada nas mesmas circunstâncias, dependendo também da natureza e valor do interesse protegido em questão, da perigosidade da situação, da previsibilidade do dano, da relação de proximidade ou da particular confiança entre as partes envolvidas, da disponibilidade e custos de métodos preventivos ou alternativos, entre outros aspectos.
Esta omissão resultou efectivamente da matéria provada da sentença do tribunal de primeira instância, e foi confirmada pelo recurso, que entendeu que a Demandada para além das “cama de grades”, dispunha também nas suas instalações de grades amovíveis para colocação pontual em camas sem grades. E caso não dispusesse, podia dispor, sendo que esta grade amovível podia ter sido colocada e prevenido o episódio sucedido.
Justificava-se pois que, para esta utente, nas suas concretas circunstâncias de saúde (pessoa idosa, doente de Alzheimer, com conhecida e recorrente instabilidade no sono, que se encontra num quarto sem câmara de vigilância, situado num piso onde uma única funcionária presta assistência a vários quartos e a vários idosos), tivessem sido colocadas grades amovíveis na sua cama, sendo de concluir que Demandada não empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias, para prevenir o evento danoso, matéria que resultou provada e por isso deverá ser responsabilizada pelo evento danoso.
Já no que toca ao montante indemnizatório o Tribunal da Relação decidiu reduzir o montante por considerar que nesta situação, para além das circunstâncias referidas na sentença do tribunal a quo (como sejam a esperança de vida, o facto de esta diminui a partir do momento em que o idoso deixa de viver em sua casa e passa a viver num lar, o grau de culpabilidade da demandada (negligência), o facto da situação económica da Demandada muito superior à dos Demandantes), deve ainda ter-se em conta que a falecida senhora padecia de Alzheimer, doença que tem um quadro clínico de evolução altamente incapacitante e limitativo da qualidade de vida.
No que respeita à Demandada, apesar de ser de considerar que esta uma capacidade económica muito superior à dos Demandantes, tal não é critério suficiente, pelo que deve ser tido em conta que se trata de uma instituição de solidariedade social sem fins lucrativos.
Por tais razões, decidiu reduzir o montante total da indemnização para € 70.000,00.
III – A decisão
Neste processo, o Tribunal da Relação decidiu então julgar parcialmente procedente o recurso, por entender que existe responsabilidade civil por culpa in vigilando, reduzindo contudo o montante da indemnização, mantendo-se no mais a sentença do tribunal de primeira instância.
IV – Conclusão
Existe lugar à responsabilidade civil pelo dano causado das entidades responsáveis pelos lares de idosos quando não tenha sido cumprido escrupulosa e diligentemente o dever de vigilância a que estão obrigados, cabendo a estes responsáveis desenvolver as tarefas e medidas necessárias à protecção e segurança dos utentes, designadamente quando não possam viver autonomamente.