O princípio da irredutibilidade da retribuição
Neste artigo vamos analisar o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/01/2019, com o número de processo 1176/18.6T8OAZ.P1, sobre o princípio da irredutibilidade da retribuição e direitos adquiridos pelos trabalhadores.
A factualidade que causou o litígio foi a seguinte:
Após uma inspeção por parte da Autoridade das Condições de Trabalho – ACT -, a uma Sociedade anónima cujo objeto social seria a limpeza geral de instalações, verificou-se que a mesma teria pago um salário inferior a uma trabalhadora no mês de maio de 2016, em comparação com os meses de março e abril do mesmo ano, onde a retribuição global tinha sido superior. É de apontar também que esta trabalhadora encontrava-se a trabalhar no regime de part time, estando a exercer parte da sua atividade aos domingos.
A justificação para tal diminuição salarial seria a alteração a uma convenção coletiva celebrada entre um Sindicato, no qual a trabalhadora estaria filiada e a Sociedade empregadora. Na nova versão da convenção, ter-se-ia acabado com o denominado “subsídio de domingo” que consubstanciava um acréscimo salarial no valor de 16% calculado sobre o valor da retribuição base.
Apesar de a alteração ao IRCT ter também previsto um incremento no valor pago a título de subsídio de alimentação (nomeadamente o valor, para quem exercia a sua atividade aos domingos, ter passado de 1.82€ para 5.50€), tal não obstou a que a retribuição global não sofresse um ligeiro decréscimo no mês de maio (já ao abrigo das novas alterações), quando comparado com os meses de março e abril (ainda ao abrigo do regime antigo).
Falando de valores em concreto, a trabalhadora recebeu 440.49€ em março, 441.51€ em abril e 432,41€ em maio. Assim sendo, entendeu a ACT que teria havido uma violação do princípio da irredutibilidade da retribuição, consagrado no artigo 129º n.º1 alínea d) do Código do Trabalho (CT).
Com base nesta violação, achoU por bem a ACT aplicar uma coima no valor de 45 unidades de conta (4590€) à Sociedade. A mesma sociedade impugnou tal decisão em tribunal, tendo obtido um resultado desfavorável em 1ª instância.
Inconformada, a entidade empregadora decidiu apresentar recurso da decisão para o Tribunal da Relação. Este Tribunal entendeu que a situação descrita não violou o princípio da irredutibilidade da retribuição, razão pela qual revogou o douto acórdão da 1ª instância.
Vejamos as razões que assistiram a esta decisão revogatória da Relação.
Primeiramente, há que perceber em que consiste o princípio da irredutibilidade da retribuição presente no artigo 129º/1 d) do CT, adiantando-se já que resulta de uma concretização do direito ao salário, previsto Constitucionalmente no art.º 5º9/1 alínea a). Com aquela consagração legal, a ideia do legislador foi a de garantir que, regra geral, o salário do trabalhador não pode ser diretamente reduzido por acordo entre o empregador e o trabalhador. Contudo, e como nada é tão linear quanto isso, estão também previstas formas indiretas de afetação da retribuição de forma negativa ao longo da duração da relação laboral, uma das quais no final da mesma alínea d) do art.º 129º/1.
Nomeadamente, a possibilidade de a retribuição ser reduzida por IRCT, que era justamente o nosso caso. No entanto, o art.º 503º/3 do CT limita esta exceção, afirmando que uma nova convenção não pode, globalmente, resultar numa maior desproteção do trabalhador (isto é, ser menos vantajosa que a anterior). E, como vincou bem o Tribunal, cabe às partes envolvidas o julgamento sobre a maior ou menor proteção, dado esta valoração importar aspetos e considerações altamente subjetivos. Esta subjetividade prende-se com a ideia de que uma convenção pode ser mais vantajosa na vertente de, por exemplo, a carga horária ser menor ou existirem mais pausas mas ser menos vantajosa por atribuir menos dias de férias. Nestes casos, cabe a escolha ao trabalhador sobre qual considera ser a convenção mais vantajosa, com base nos seus juízos próprios sobre o que considera mais importante.
Ora, no caso em concreto, havendo uma cláusula que acolhe o entendimento de ambas as partes de que a convenção posterior era mais favorável para o trabalhador que a anterior, não obstante a alteração nos subsídios, tal será um argumento forte para a Relação ter entendido que o limite do art.º 503º/3 não fora extravasado.
Portanto, esteve bem aqui a Relação, ao entender que o juízo sobre a globalidade mais favorável cabia ao Sindicato outorgante, dado se encontrar legitimado pelo trabalhador para declarar tal entendimento, com base na sua filiação e não o juiz do Tribunal de 1ª instância.
Outro ponto importante que o Tribunal analisou foi o facto de o princípio da irredutibilidade da retribuição só se aplicar à retribuição em sentido estrito e, dentro desta, às prestações que digam respeito à forma de executar a prestação a que o trabalhador está adstrito. Simplificando, nem todos os pagamentos feitos pelo empregador ao trabalhador são retribuição no sentido estrito ou jurídico. Veja-se o art.º 260º do CT, onde se exemplificam situações que não se consideram como integrantes da retribuição, não estando assim abrangidas, desde logo, pelo princípio da irredutibilidade.
Concretizando um pouco mais, são três as especificidades necessárias para se enquadrar algo como retribuição em sentido estrito, de acordo com os números 1 e 2 do art.º 258º:
- Ser um pagamento em dinheiro ou em espécie (caráter patrimonial);
- Periodicidade (pagamento regular e periódico) e
- Ser o mesmo uma contra-prestação derivada da prestação da atividade laboral.
Não havendo dúvidas quanto à verificação dos dois primeiros requisitos, já em função do último requisito existe uma crítica a fazer ao entendimento da Relação.
Tal crítica prende-se com a forma como o Tribunal subtraiu o “subsídio de domingo” (que, juridicamente falando, é um subsídio de penosidade – um acrescento patrimonial atribuído com justificação na maior precariedade em que se presta a atividade laboral) ao conceito de retribuição. Esteve bem o Tribunal ao entender que, apesar de este subsídio integrar o conceito de retribuição, por ter preenchidos os 3 requisitos e não se encontrar diretamente excluído pelo art.º 260º/1 e 2, não será só por isso que estará abrangido pelo limite do princípio da irredutibilidade da retribuição.
Baseando-se num acórdão da Relação de Coimbra (processo n.º 806/13.0TTCBR.C1), muito rico em doutrina, entendeu a Relação do Porto que, como o empregador pode livremente, no âmbito do seu poder de direção do art.º 97º do CT, alterar o período em que o trabalhador labora, pode fazer cessar unilateralmente a situação justificadora do incremento salarial. Consequentemente, como a situação de penosidade deixaria de existir, também o subsídio deixaria de ser devido. Todo este entendimento é indiscutível, quer na doutrina quer na jurisprudência.
Contudo, não foi isto que aconteceu. O empregador não fez com que a trabalhadora deixasse de exercer a sua atividade ao domingo. Se o fizesse, teríamos uma justificação para desconsiderar a proteção do art.º 129º/1 d); mas não o fazendo, não há justificação plausível para não se incluir a quantia extra de 16% do subsídio de domingo na definição de retribuição protegida pelo princípio da irredutibilidade da retribuição. Assim sendo, não se concorda com o juiz da Relação quando excluiu o subsídio de penosidade do conceito de retribuição protegido pelo art.º129º/1 d).
Portanto, a supressão de tal quantia, importa uma violação do princípio da irredutibilidade da retribuição, dado não ter o empregador alterado a factualidade da trabalhadora laboral aos domingos. Este entendimento do Tribunal da Relação do Porto, apesar de ser criticável, não obstaria a que se entendesse que a redução seria lícita, dado que continuamos ao abrigo da exceção da possível redução por IRCT, desde que este na sua globalidade seja mais vantajoso para o trabalhador, sendo esta situação assim compreendida pelo próprio trabalhador, com base no exposto na cláusula 58 da nova convenção.
Interessante foi também a forma como o juiz entendeu que apenas por ter a trabalhadora recebido menos no mês de maio (e também junho, por acréscimo do próprio) não seria suficiente para se ter por certo que as alterações contratuais significavam uma redução da retribuição. Este entendimento está ferido pela conclusão prévia de que o subsídio de domingo não consubstancia uma retribuição. Como afirmado antes, opina-se no sentido de o mesmo ser parte integrante da retribuição em sentido estrito, ao passo que não existem dúvidas quanto ao subsídio de alimentação não o ser, pelo disposto no art.º 260º/2. Deste modo, houve substituição de retribuição por um subsídio, pelo que haverá sempre uma diminuição da retribuição.
E também assim podemos contrapor quando o Tribunal começa a fazer considerações sobre se não haverá um possível incremento do salário líquido, dado não estar o subsídio de alimentação sujeito às contribuições para a segurança social ou descontos fiscais, em oposição ao que aconteceria com os 16% de acréscimo pelo subsídio de penosidade. É também importante recordar que do enquadramento de um pagamento como retribuição acrescem outras proteções pelo art.º 258º/4, tais como o fundo de garantia social do art.º 336º. Deste modo, e apesar de a Relação poder ter razão quanto ao aumento do salário líquido, tal será irrelevante para a questão, não devendo servir como argumento.
O último ponto relevante, foi a indagação do Tribunal de que esta redução poderia violar os direitos adquiridos pela trabalhadora. Estes direitos têm por base as legítimas expectativas jurídicas, tuteladas pelo princípio da proteção da confiança e traduzem a ideia de que a partir do momento em que um direito foi obtido de modo permanente por alguém (um trabalhador neste caso) já não mais pode ser-lhe livremente retirado. Aqui não há qualquer observação a fazer ao entendimento do juiz da Relação, pois da factualidade exposta parece ser facilmente percetível que nada indica algum caráter de perpetuidade atribuído ao subsídio pelas partes, pelo que não poderíamos estar perante um possível direito adquirido.
Concluindo, não se crê que tenha decidido bem o tribunal quando entendeu que a supressão do subsídio de penosidade não consubstanciava uma violação do princípio da irredutibilidade da retribuição tout court. No entanto, a circunstância de tal supressão ter sido feita por IRCT, sem violação do disposto no art.º 503º/3, resulta invariavelmente no enquadramento da situação como uma exceção ao princípio da irredutibilidade. De modo que a decisão de dar provimento ao recurso (absolvendo assim a Sociedade da contraordenação) acaba por ser correta, apesar de ficar manchada com aquele primeiro entendimento.