Os elementos do instituto da posse e influência das presunções judiciais à luz do Ac. do STJ de 29/01/2019
Neste artigo iremos analisar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 29/01/2019, que se debruçou sobre os elementos caracterizadores do instituto da posse – o corpus e o animus – bem como influência das presunções judiciais, enquanto instituto idóneo para provar certos factos, sobretudo factos de natureza psicológica, no que concerne ao instituto da posse.
Ora, na acepção prevista no Código Civil (doravante, CC), nomeadamente, nos termos do art. 1251.º, a posse é definida como o “(…)poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”.
In casu, os Autores intentaram uma acção declarativa em processo sumário, tendo como pedido que o tribunal de primeira instância declare e condene a Ré a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio urbano, assim como ser a Ré condenada a abster-se da prática de qualquer acto que afecte o direito de propriedade dos Autores sobre tal prédio ou que afecte ou diminua o seu gozo (pedidos com interesse para o nosso artigo, podemos foram realizados outros pedidos pelos Autores).
O Autor intentou uma acção a requerer o reconhecimento do seu contrato de trabalho com a Ré, entre 2007 e 2015, alegando que trabalhava de forma exclusiva para esta entidade. A Ré contestou alegando que o Autor nunca solicitou a sua integração como trabalhador e, para além disso, nunca o mesmo foi seu colaborador.
Perante os pedidos, a Ré contestou, tendo, ainda apresentado pedido reconvencional, pedindo o reconhecimento do seu direito a ser indemnizada pelo valor das benfeitorias e ainda que adquiriu o prédio por usucapião.
Em primeira instância, decidiu o douto tribunal julgar a acção parcialmente procedente e improcedente o pedido reconvencional realizado pela Ré e, em consequência, condenar a esta a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio urbano, sendo, em tudo o mais pedido, absolvida.
Inconformada com a decisão do tribunal de primeira instância, a Ré apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, pugnando pela anulação da parte da sentença do tribunal a quo, substituindo-a por acórdão que condenasse os Autores a reconhecerem a aquisição por usucapião, a seu favor, do prédio em causa.
Desta feita, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu julgar improcedente a acção, absolvendo a apelada dos pedidos formulados na petição inicial, bem como declarar que esta adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio urbano sub judice.
Por seu turno, os Autores e Apelados, inconformados com a decisão do douto Tribunal da Relação, interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ), pugnando pela revogação do Acórdão recorrido e, consequentemente, pela improcedência do pedido reconvencional formulado pela Ré.
Perante o recurso apresentado, bem como perante as alegações dos Recorrentes, decidiu o STJ que as questões a decidir, in casu, seriam, em primeiro lugar, se o Acórdão recorrido enferma da nulidade invocada nos termos dos artigos 615.º, nº 1, al. d), 666º e 674º, nº 1, al. c), todos do CPC e, em segundo lugar, se a Recorrida adquiriu por usucapião o direito de propriedade sobre o prédio.
Ora, centrando-nos na segunda questão, aquela que maior relevo apresenta, o STJ começou por considerar que não se coloca em causa a existência de uma presunção de titularidade do direito de propriedade do prédio urbano sub judice a favor dos Autores (ora Recorrentes), devido ao registo da aquisição realizado a seu favor. Porém, considerou que esta presunção mostra-se, única e exclusivamente, como uma presunção, não devendo o direito de propriedade ser reconhecido aos Autores se da factualidade provada for possível resultar que outro(s) é (são) o(s) proprietário(s) do referido prédio urbano.
De seguida e de forma a iniciar a fundamentação da sua análise, considerou o STJ que seria necessário analisar o reconhecimento, declarado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de que a Ré adquiriu o direito de propriedade do prédio por usucapião, com base no exercício de posse não titulada, de má fé, pacífica, pública por período superior a vinte anos.
Assim, determinou que o STJ que o primeiro passo a dar seria o de verificar se existia posse “boa” para usucapião por parte da Recorrida ou, se, pelo contrário, faltava ao poder de facto (comprovadamente) exercido alguma coisa que fosse necessária para a sua qualificação como tal.
Para tal, seria então necessário debruçar acerca das duas conceções doutrinárias que debatem-se sobre o conceito de posse.
Para tal, baseou-se o STJ nas palavras de Rui Pinto Duarte, que considera que no confronto entre essas duas conceções, que “Uma é dita ‘subjetivista’ por sustentar que a posse envolve, para além da materialidade da situação em que consiste, um elemento de cariz subjetivo, consistente numa intenção. A outra é dita ‘objetivista’, por se contentar com a materialidade da situação”, caracterizando-se a primeira pela exigência de dois elementos – “elementos esses tradicionalmente designados por corpus e animus” – e entendendo “a maioria da Doutrina e a quase totalidade da Jurisprudência […] que o Código Civil acolhe [esta] conceção da posse”.
Olhando para o nosso ordenamento jurídico, as normas do artigo 1251.º e 1253.º do CC são as normas mais invocadas para sustentar a concepção doutrinária dita “subjectivista”, pois, contêm, respectivamente, as definições legais de posse e de mera detenção.
Desta forma, considerou o STJ determinante a relevância da distinção entre as situações de possuidor e mero detentor, sobretudo, para efeitos de usucapião, pois, só o possuidor é susceptível de usucapir, como se conclui pela leitura do disposto nos artigos 1287.º e 1290.º do CC.
Mas também no que concerne aos elementos caracterizadores do instituto da posse – o corpus e o animus – existem divergências, sobretudo, no que à definição destes elementos diz respeito.
In casu, partindo da noção de corpus que parece mais adequada em face do artigo 1257.º, n.º 1, do CC e da factualidade provada, considerou o STJ que não falta o elemento corpus na posse da Recorrida sobre o prédio urbano em causa, uma vez que praticou diversos actos materiais sobre o mesmo, o que se estabeleceu já, ao longo do tempo, uma relação de tal modo sólida entre o prédio e a esfera da Recorrida.
Provada a existência do elemento corpus, avançou o STJ com a apreciação do alegado pelos Recorrentes, nomeadamente, de que faltaria, na situação em apreço, o elemento subjectivo da posse (o animus).
Segundo o entender dos Recorrentes, não podia o Tribunal recorrido ter dado o animus como provado com base numa qualquer presunção judicial e na presunção legal do artigo 1252.º, n.º 2, do CC, argumento que, no entender do STJ, torna-se difícil de acompanhar e não permite dar razão aos Recorrentes.
Os Recorrentes consideram que o Tribunal da Relação de Lisboa não deveria ter dado o animus como provado, com base numa qualquer presunção judicial, “pois as aludidas presunções não constituem meios de prova, mas meros processos lógicos mentais ou afirmações formados em regras da experiência”.
As presunções judiciais são processos lógicos baseados em regras da experiência, considerando o STJ, ao contrário do que afirmaram os Recorrentes que estas constituem um instrumento plenamente idóneo e até bastante frequente para provar certos factos, nomeadamente, factos de natureza psicológica que, por esta sua natureza, é especialmente difícil serem provados por outros meios, como acontece, justamente, quanto ao elemento animus da posse.
Ademais, o animus foi dado como provado por funcionamento de uma presunção judicial, pois presume-se a posse em nome de quem exerce o poder de facto.
Entendeu o STJ que a presunção é invocada, sim, com o intuito de dar como provada a posse em nome da Recorrida, em virtude de esta vir exercendo um poder de facto sobre o prédio, cabendo aos Recorrentes produzir prova de que, apesar do exercício deste poder de facto, a Recorrida não era possuidora em nome próprio mas sim, por exemplo, ao abrigo de um contrato de arrendamento, como arrendatária, prova essa que não foi, contudo, produzida, pelo que se deu por provada a posse da (em nome da) Recorrida.
Perante os factos e a interpretação das normas aplicáveis, acabou por determinar o STJ que a Recorrida exerceu uma posse não titulada (cfr. artigo 1259.º, a contrario sensu, do CC), de má fé (cfr. artigo 1260.º, n.º 2, do CC), pacífica ou sem violência (cfr. artigo 1261.º do CC) e pública (cfr. artigo 1262.º do CC).
Para além disso, não sendo a posse de Recorrida registada e tendo decorrido, entre a data do seu início (1980) e a data da presente acção (2010), um período superior a vinte anos, considerou, ainda, o STJ que estão reunidas todas as condições para a Recorrida ter adquirido, por usucapião, o direito de propriedade sobre o prédio. direito este devendo ser judicialmente reconhecido.
Como podemos ver, assiste ao conceito de posse, dois elementos constitutivos – o corpus e o animus -, caracterizando-se o primeiro por elemento que se traduz numa “relação social” (elemento objectivo) entre o possuir e o bem, cabendo ao possuir fazer prova dessa relação, enquanto o segundo, enquanto um elemento de cariz subjetivo, consistente numa intenção, poderá ser provado através da figura jurídica das presunções legais, em caso de ser criada a dúvida no órgão decisor, cabendo ao interessado fazer prova de inexistência deste elemento.