Pressupostos para a qualificação de homicídio à luz do ac. do STJ de 15/01/2019
Neste artigo iremos analisar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 15/01/2019, que se debruçou sobre a caracterização de um homicídio qualificado e a concretização das suas alíneas.
O crime de homicídio, dito simples, no nosso ordenamento jurídico, previsto no artigo 131º do Código Penal, estabelece que quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.
Contudo, quer o limite máximo, quer o limite mínimo da pena supra referida é aumentado, quando a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, podendo o Agente/Arguido ser punido com uma pena de prisão entre 12 a 25 anos, passando o homicídio a ter a designação de homicídio qualificado.
Porém, as circunstâncias que podem revelar essa tal censurabilidade ou perversidade do Agente constam de forma não-taxativa, no artigo 132º do Código Penal, nas suas alíneas do nº 2, sendo que para análise do presente Acórdão importam as seguintes:
- “e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;” (sublinhado nosso)
- “i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;” (sublinhado nosso)
- “j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;” (sublinhado nosso)
In casu, o Arguido foi condenado, em primeira instância, a 19 anos de prisão por um crime de homicídio qualificado e agravado, na forma consumada, nos termos dos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea i), e) e j) do Código Penal, tendo o mesmo recorrido de tal sentença, pois entendia que a sua atitude não estava plasmada em nenhuma alínea, não podendo assim ser condenado por homicídio qualificado e apenas por homicídio simples.
Ora, uma vez que as alíneas constantes no nº 2 do artigo 132º referem apenas exemplos de situações em que existem especial censurabilidade ou perversidade e não são taxativas, a doutrina e a jurisprudência muitas vezes discordam se tal situação deverá ou não ser dotada de tal caracterização, sendo contudo unânime no sentido em que o crime de homicídio qualificado, constitui um tipo qualificado por “(…) um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração não exaustiva dos exemplos-padrão, relativos ao facto e ao agente, indiciadores daquele tipo de culpa agravado, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente.”
Posto isto, foi analisado pelo Supremo Tribunal de Justiça, neste Acórdão, todas as alíneas do nº 2 do artigo 132º, em quais radicada a determinação da condenação do Arguido, por homicídio qualificado.
Posto isto, decidiu o Tribunal que verificação da circunstância de o agente ser determinado por “ (…) qualquer motivo torpe ou fútil” (al. e) supra referida, requer a ponderação de elementos de contextualização sociocultural da ação do arguido, para se poder concluir se esta foi determinada por um motivo gratuito, insignificante, sem qualquer importância, desprezível ou repugnante.
O que, a nosso ver, faz todo o sentido, uma vez que, para que uma situação possa ser classificada de fútil, será indispensável conhecer o contexto e a realidade social do Arguido, sendo que só dessa forma será possível tirar qualquer tipo de ilação e classificar a sua atitude e comportamento.
Não existem dois indivíduos iguais, daí ser absolutamente necessário avaliar, ponderar e decidir, contextualizando socioculturalmente os indivíduos.
No caso em apreço, para que o Tribunal formasse a sua convicção de que o Arguido não teria, com a sua atuação, agido por um motivo fútil e consequentemente não tivesse preenchido os requisitos de tal alínea, foi o facto de ter ficado provado que o Arguido e a vítima mantinham um diferendo, com cerca de 20 anos, a propósito de umas obras realizadas pelo primeiro numa casa desta, pelas quais reclamava o pagamento da parte do preço não paga, invocando a vítima que as obras não foram concluídas, recusando o pagamento.
Ademais, o Arguido, cerca de uma ou duas semanas antes, foi a casa da vítima pedir-lhe o pagamento, tendo esta “fechado a porta na sua cara”, ficando o mesmo na rua a resmungar sozinho e ainda que, por vingança, o Arguido tomou a resolução de matar, sendo o mesmo oriundo de uma família humilde, seguiu um processo de socialização segundo regras e referências de valores tradicionais e característicos do meio rural, não se considerando verificada tal circunstância.
Ademais, o Tribunal deixou claro que no que diz respeito ao conceito de “(…) meio insidioso;” referido na supra al. i), terá que relevar a “insídia” própria do meio utilizado e um meio insidioso é um meio que “(…) possui características análogas às do veneno, do ponto de vista do seu carácter enganador, traiçoeiro, dissimulado, sub-reptício ou oculto, não se incluindo no âmbito de previsão da norma os casos em que o agente tenha agido de surpresa, utilizando um instrumento letal (como um arma ou uma faca) em que, pela sua qualidade, natureza ou modo de utilização, (…)”. Ora, tendo-se demonstrado que o Arguido tinha utilizado uma caçadeira, aproveitando-se da circunstância de a vítima se encontrar sozinha, num lugar isolado, atingindo-a com um tiro disparado à distância aproximada de 20 metros, quando, no momento do disparo, esta se encontrava de costas, não se poderá concluir que o agente utilizou um meio insidioso.
E terá, a nosso ver, o Supremo Tribunal de Justiça toda a razão, pois não existe no uso de uma arma nenhum caráter dissimulado ou oculto e não se provou que o Arguido colocou a vítima numa situação de absoluta impossibilidade de resistir ou de fugir.
Nenhuma desta alíneas encaixava nas atitudes do Arguido e como tal não poderia o mesmo, por elas, ser acusado de um crime de homicídio.
Contudo, relembramos que a alínea j) implicava o Arguido agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas, algo que efetivamente aconteceu.
O Arguido formou a vontade de matar a vítima cerca de uma ou duas semanas antes, aguardando pela melhor oportunidade para levar a efeito a ação com que pôs termo à vida da mesma. Ademais, no dia em que a matou, depois de se assegurar que esta se encontrava no local onde a atingiu e por onde passou mais de uma hora antes, foi buscar a caçadeira que tinha na sua residência, aguardando que a sua mulher se ausentasse, para que esta não dificultasse a sua ação, dirigiu-se de novo ao local onde disparou, finalmente, sobre a vítima, causando-lhe a morte.
Ora, terá de concluir-se, inequivocamente que o Arguido planeou a sua atuação, tendo imensos momentos para parar e pensar na atitude que iria tomar. Mas não o fez, pelo contrário, este refletiu e mediante um comportamento consciente e concertado matou a vítima, tendo persistido a sua intenção de matar por mais de 24 horas.
E, efetivamente, opinião homóloga à nossa foi plasmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que, considerou parcialmente procedente o recurso do Arguido, acabando por o mesmo continuar acusado de um crime de homicídio qualificado, mas apenas radicado na alínea j).
Como vimos, o facto de existir uma enumeração não taxativa, faz com que muitas vezes as decisões dos Tribunais sejam diferentes, uma vez que, os entendimentos dos Magistrados são eles mesmos diferentes. Contudo, o importante será sempre a culpa agravada do agente e a perversidade do seu comportamento, não devendo cair-se no erro de tornar todas as atuações qualificadas, ou vice-versa.