Alojamento local, momento atual

Nos idos tempos de 2019, decidiam os Tribunais Superiores deste país que “Prevendo o título constitutivo da propriedade horizontal que determinada fracção se destina à habitação, não existe, em princípio, impedimento a que o seu proprietário a afecte a alojamento local de turistas. O conceito de alojamento, mais restrito, acha-se contido no conceito de habitação, de maior abrangência. Sem a concordância do proprietário da fracção afecta a alojamento local não pode a assembleia de condóminos deliberar no sentido de proibir ou impor restrições ao uso da fracção para essa finalidade”.
Cinco anos, uma pandemia e muita polémica depois, o panorama é completamente diferente, podendo falar-se mesmo numa volta de 180º graus face ao que acima era decidido.
A “culpa” dessa inversão, como é amplamente divulgado, é do acórdão uniformizador de jurisprudência emanado em 22/03/2022 pelo Supremo Tribunal de Justiça e que, com uma simples frase – “No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fracção se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local” – deitou por terra um dos conceitos basilares do direito de propriedade – o direito de fruição.
Conforme temos avançado regularmente, o direito de propriedade compreende 3 vertentes: uso, fruição e disposição. O uso, como o próprio nome indica, é a faculdade de utilizar a coisa, o aproveitamento da coisa cuja propriedade se tem. Já o direito de fruir, constitui o direito de aproveitar e de se apropriar dos frutos da coisa (no caso de um imóvel, por exemplo, as rendas do mesmo). O direito de dispor inclui o direito de transformar a coisa, facultar o seu uso, fruição e disposição a outrem, vender ou onerar a mesma.
Este direito de propriedade é também um direito constitucionalmente previsto – art. 62º da Constituição da República Portuguesa (CRP) – cuja epígrafe é “Direito de propriedade privada”. No mesmo é expresso que “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”.
Assim, a todos é constitucionalmente (lei fundamental) garantido o direito à propriedade privada, que compreende as 3 vertentes acima indicadas, porém, por decisão judicial, todas estas garantias foram atropeladas e desconsideradas.
Cada vez mais o direito de propriedade se encontra esvaziado por conta da interpretação que se tem feito de outros direitos – fundamentais ou não – utilizando a mesma como motivo de aprovação de inconstitucionalidades.
No pódio dos motivos que “sangram” o direito de propriedade, temos o direito à habitação, os direitos de personalidade (reserva e intimidade da vida privada) e o direito à segurança, quando em conflito com o primeiro.
Mas será mesmo assim? Vamos ver.
Diz o Código Civil, no seu art. 335º nº 1 que “Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes”.
Já o nº 2 especifica que “Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”.
Com base nesta premissa, analisaremos o conflito (natural ou artificialmente criado) entre cada um destes direitos.
Direito de propriedade vs direito à habitação
O direito à propriedade, conforme acima foi referido, é um direito constitucional (art. 62º CRP), tal como também o é o direito à habitação (art. 65º da CRP), pelo que, no plano legal, têm os dois força constitucional, sendo então da mesma espécie.
Contudo, em termos de organização sistémica, o legislador colocou-os num plano diferenciado e isso aconteceu por alguma razão, dado que toda a organização sistemática de qualquer diploma obedece a critérios de lógica.
De facto, apesar de estarem muito próximos (arts. 62º e 65º), o direito de propriedade e o direito à habitação encontram-se em capítulos diferentes (Capítulo I e Capítulo II dos Direitos e deveres económicos, sociais e culturais, respetivamente).
O direito de propriedade, estando no Capítulo I, é considerado um Direito e Dever Económico (o próprio nome do Capítulo), já o Capítulo II é dedicado aos Direitos e Deveres Sociais, onde se inclui o direito à habitação. Encontramos, assim, a primeira destrinça entre os dois direitos.
A outra grande diferença é que os direitos económicos são de prossecução privada, ou seja, é o particular que tem de arranjar forma de fazer valer os seus direitos (ter um trabalho, ter propriedade própria, etc.). Já os direitos sociais, são de prossecução do Estado.
Quer isto dizer que compete ao Estado e não aos particulares prover às necessidades sociais e a CRP não deixa margem para dúvidas sobre esta função estadual quando determina, no nº 2 do art. 65º que “Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado (…)”.
Assim, na verdade, direito à propriedade privada e à habitação nem deviam, sequer, estar em rota de colisão, pois que sendo um de iniciativa privada e outro de iniciativa pública, nem se deviam cruzar.
Contudo, o Estado, em vez de executar o que ordena a CRP, escolhe o caminho mais fácil, mesmo que inconstitucional – retirar ou restringir aquilo que é fruto dos cidadãos particulares, de modo a forçá-los a cumprir com um desiderato que, na verdade, só a esta entidade competia.
Deste modo, foi bastante fácil desviar a atenção da falta de competência na gestão das políticas habitacionais, com a falácia de que era o alojamento local que retirava casas do mercado do arrendamento e que, como tal, teria de se encurralar proprietários, levando-os a desistirem do direito de fruição que entenderam fazer dos seus imóveis, levando-os para um caminho de sentido único, que seria darem à sua propriedade o uso que o Estado pretende.
Direito de propriedade vs direito à reserva da intimidade da vida privada
Outro dos argumentos que tem sido utilizado contra o direito de propriedade na vertente de exploração da coisa como bem entende o proprietário é o direito de reserva da intimidade da vida privada.
Este direito faz parte do acervo dos direitos de personalidade, intrínsecos a cada ser humano e, como tal, a sua natureza superior é indiscutível.
Estes direitos encontram-se constitucionalmente previstos, aliás, no art. 26º CRP, que está inserido no Capítulo dos Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais, que faz parte do acervo dos Direitos Fundamentais, teoricamente num plano acima dos Direitos Económicos.
Assim, perante o direito de propriedade, a reserva da intimidade da vida privada prevaleceria sempre, em caso de conflito ou colisão de direitos. Contudo, tal direito não é ameaçado nem prejudicado pelo direito de propriedade, na medida em que estando cada sujeito na sua propriedade privada, não haveria motivo para qualquer pessoa se imiscuir na vida, também ela privada, de outrem.
Desta forma, é um argumento que não deveria colher, muito menos nos dias que correm, em que o conceito de intimidade da vida privada é um pouco dúbio, dado que é utilizado não como o direito absoluto que é, mas sim como um direito de conveniência, pois que, se por um lado, um alojamento local em prédio sujeito a propriedade horizontal pode violar o direito à reserva da intimidade da vida privada de outro condómino, ainda que não exista, sob qualquer pretexto ou modo, intromissão em lugar vedado ao público (pois só com a intromissão em casa alheia, se poderia dar uma verdadeira intromissão na vida privada), por outro não há qualquer problema em expor essa mesma intimidade e vida privada nas redes sociais, onde os perigos abundam de forma descontrolada.
Direito de propriedade vs direito à segurança
O direito à segurança aparece logo a seguir aos direitos de personalidade, no art. 27º da CRP, sob a epígrafe “Direito à liberdade e à segurança” e, portanto, goza da mesma tutela e valor que o anterior.
Se é certo que, num prédio em propriedade horizontal, com vários proprietários, problemas com segurança possam ser virtualmente exponenciados existindo um alojamento local (porquanto em teoria, a movimentação de circulação de pessoas no prédio é mais elevada), a verdade é que a ameaça à segurança pode advir de outros factores que se verificam mesmo que não exista esta modalidade de exploração económica de um imóvel de propriedade privada.
Qualquer condómino que seja mais social e receba um número elevado de visitas, encomendas (numa altura que o comércio online é uma realidade instalada, por força da pandemia), serviços, seja afeto à residência de estudantes ou outra qualquer razão que implique uma maior movimentação de pessoas, pode ser um factor de aumento do risco na segurança de todos.
Não menos assim será para quem mora nos rés do chão, para quem tem as portas de entrada dos prédios com as fechaduras estragadas ou para quem, simplesmente, não fecha as portas de entrada nos prédios.
Assim, a segurança, apesar de ser qualificada como um direito, é também um dever de todos os cidadãos, na medida em que “cautelas e canja de galinha nunca fizeram mal a ninguém”.
Deste modo, o alojamento local, como várias coisas na vida, passou de bestial a besta, sendo que, no virar do ano, vimos o número de licenças canceladas passar para o dobro, dado o peso tributário que o Estado colocou em cima de quem “escolhesse” continuar com a exploração/fruição da sua propriedade privada (como se, face à conjuntura económica atual, esta fosse uma verdadeira escolha para a maioria dos proprietários que apenas têm um segundo imóvel além da sua habitação própria permanente por força de uma qualquer herança que pretendem conservar, como, de resto, é seu direito, tal como as outras pessoas têm os seus direitos à segurança e vida privada).
O mais desapontante neste acervo de medidas, é constatar que as políticas escolhidas, em termos de resolução dos problemas, não contribuem em nada. Quem escolheu prosseguir com a sua atividade económica, suportando o maior encargo fiscal que aí vem, não vai ver o fruto da sua contribuição extraordinária ser afeto à construção/reabilitação das propriedades do Estado que poderiam servir de habitação social.
Quem não quis conviver com um alojamento local na sua propriedade horizontal, vetando a sua existência, não vai ver o fruto dos seus impostos colocar mais policiamento nas ruas, para assegurar a sua segurança (passando a redundância).
Quem sentiu a sua privacidade ameaçada, vai continuar a ver vários dos seus dados pessoais e sensíveis expostos e partilhados, ainda que exista um Regulamento de Proteção de Dados.
Assim, vilanizou-se o alojamento local, para que todos os problemas que lhe foram apontados, subsistissem, não obstante a sua queda. Mas ainda bem que os direitos fundamentais existem e que podemos contar com o Estado para a sua prossecução e proteção…
