Contrato de suprimentos e figuras afins
Análise da figura do contrato de suprimentos no Direito Societário
Hoje abordamos um ponto onde o Direito Societário toca no Direito civil, na distinção entre contratos de suprimentos e figuras afins, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (dgsi.pt).
Contornos Concretos do Caso
Começando pelos contornos concretos do caso, estes diziam respeito uma sociedade por quotas, que teria recebido prestações pecuniárias (em dinheiro) no valor total de cerca de 21.000 € por parte de uma sócia, que posteriormente havia alienado a sua parte, deixando de fazer parte dos corpos sociais da empresa.
Posição da Sócia Autora em relação ao Contrato de Suprimentos
Ora, no entender da sócia, Autora na ação, tais empréstimos configurariam um contrato de suprimentos, nos termos do art. 243º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), pelo que esta teria direito a ser ressarcida do valor despendido, mesmo tendo alienado a sua quota.
Configuração dos Factos pela Empresa
Já na configuração dos factos da empresa, as prestações não tinham um caráter de permanência, elemento constitutivo da figura do suprimento, pelo que não poderiam assim ser consideradas. Deste modo, tal obrigação estaria compreendida na esfera da sócia enquanto tal, pelo que teria sido trespassada com a venda da sua quota, não estando a empresa em dívida para com a sócia exonerada.
Análise da Figura dos Suprimentos
Começando pela análise da figura dos suprimentos, art. 243º do CSC, estes configuram um tipo de prestação acessória, regulada nos arts. 209º e seguintes do CSC, mas não se confundem com esta, pois apenas podem ser prestações de um tipo: pecuniárias. Estes negócios não carecem de forma legal, art. 243º/6. Outra característica essencial desta figura, que a distingue de todas as outras, é o seu caráter de permanência. Não sendo fácil provar-se tal virtude, o art. 243º do CSC prevê, nos seus número 2 e 3, dois indícios da perenidade: a existência de um prazo de reembolso maior do que 1 ano ou a não reclamação dos créditos no prazo de 1 ano, contado da constituição do crédito. Diga-se, contudo, que nem sempre terão os sócios interesse em demonstrar que tais créditos são suprimentos, visto que, em caso de insolvência, são pagos apenas depois dos créditos para com terceiros, art. 245º/3 a) CSC. Também não lhes será possível requerer a insolvência da sociedade com base em tais dívidas, art. 245º/2 CSC. Estes dois últimos pontos explicam-se pela proximidade do sócio com a sociedade, atribuindo à figura dos suprimentos uma componente quase pessoal, como a que existem em negócios entre cônjuges, por exemplo.
Voltando ao caso concreto, o Tribunal, confrontado com estas duas visões da questão, optou por uma terceira via, mas vamos por partes.
Posição da Autora sobre o Caráter Permanente do Empréstimo
Começando por aferir da posição da autora, era seu entendimento que haveria um caráter permanente do empréstimo concedido e, por isso, foi analisar quando teria sido realizado o(s) negócio(s) de suprimento. Foi aqui que percebeu que, sendo os negócios celebrados oralmente, não foi possível apurar quando haviam sido celebrados, o que o impossibilitava de averiguar dos prazos indiciários do art. 243º/2 e 3. Com efeito, apenas sabia que a Sociedade tinha sido constituída no dia 29/09/2015 e que os créditos teriam sido reclamados em 25/11/2016, deixando um período temporal de pouco menos de 2 meses em que o crédito poderia ter sido prestado, em que poderia haver um caráter de permanência. Outra situação adversa era o facto de não se saber se estaríamos perante um contrato de suprimentos com várias prestações ou vários contratos com uma única prestação, situação esta em que dificilmente todos teriam um caráter permanente. Simplificou o tribunal, dizendo que seria um único contrato, a fim de evitar o problema identificado na última frase.
Deste modo, sem o caráter permanente, não poderia o Tribunal colher o entendimento da Autora de se tratar de um suprimento.
Assim sendo, foi entendido que, mesmo perante um contrato entre uma sócia e a respetiva sociedade, estaríamos perante um mútuo civil, regulado pelo arts. 1142º-1151º do Código Civil (CC).
Ora, tal negócio, se superior a 2.500 €, carece de forma escrita com assinatura do mutuário, art. 1143º (e, se superior a 25.000€, apenas será válido se for celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado). E, como sabemos, a falta de forma legal importa a nulidade do contrato de suprimentos, art. 220º CC.
Com a nulidade, manda o art. 289º/1 CC que sejam restituídas as prestações efetuadas, pelo que entendeu que o Tribunal ordenar a restituição dos créditos recebidos.
Aferindo o mérito da solução encontrada, pensamos que o Tribunal foi bastante simples na análise da questão. No entanto, nem sempre simplificar é algo negativo. A ver bem, o Tribunal conseguiu chegar a uma solução que termina com o pagamento integral por parte do beneficiário ao mutuante.
No fundo, aplicou-se um processo lógico simples, a saber:
não é suprimento → logo, é mútuo → falta de forma → nulidade → restituição da prestação
Os julgadores terminam a resolução do caso com uma decisão bastante justa, em que se praticamente coloca as partes na situação em que estariam caso nada de anormal tivesse acontecido. Até se poderia dizer que a sócia exonerada foi privada dos seus créditos durante alguns anos, mas a verdade é que apesar de o negócio ter sido gratuito, foi feito no interesse da pessoa como sócia, daí também não se ver como inteiramente errado a não aplicação de juros de mora, que, diga-se de passagem, nem tinham sido pedidos em primeiro lugar.
Resumindo e concluindo, mesmo que tenha imensa confiança nos seus sócios, vale a pena reduzir os contratos com a sua própria sociedade a escrito, regulando as relações entre ambas e, se possível, preveja o caráter permanente do suprimento (mas tenha cuidado, pois lembre-se que em caso de insolvência estará no fim da ordem de pagamentos).
E já sabe que, caso necessite de ajuda, a BQ Advogadas está a distância de um telefonema :).
BQ Advogadas